sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Entrevista com Rosemberg Cariry



Fortaleza - 04/06/2007 - 02:41


O POVO - Aos cinco anos, ainda em Farias Brito, o senhor tremeu ao ver imagens projetadas por um cinemeiro em um velho lençol. Quais lembranças o senhor guarda da infância e de que forma ela se relaciona à sua carreira como cineasta?

Rosemberg Cariry - Uma das causas principais foi o fato de na cidade do Crato, onde eu passei a morar a partir da década de 1960, existirem muitas salas de cinema. Na época, existiam seis salas. Então, se viam muitos filmes. E o cinema era uma coisa muito presente na vida da gente. Nós vivíamos numa sociedade de transição. Com distanciamento, já se pode fazer essa análise. Era uma sociedade tradicional que começava a mudar de forma muito vertiginosa. Tanto uma transição política - por conta do golpe de 1964 -, mas também uma transformação muito profunda dos costumes. Chegava ao interior a energia de Paulo Afonso, o progresso, o consumo, a comunicação. Mas o cinema ainda tinha uma força muito grande, ainda era "a maior diversão". E nós, crianças, girávamos em torno de dois grandes pólos importantes. Um deles era a cultura popular, suas manifestações: os reisados, os congos, as festas de renovação, as bandas de pífanos dos irmãos Aniceto, a cerâmica figurativa de Dona Ciça, as cantorias de Zé Gato, a poesia de Patativa de Assaré, a rabeca de Cego Oliveira, contando suas narrativas fabulosas. E também o cinema. Então, todos nós meninos da periferia da cidade fazíamos de tudo para segurarmos algum dinheiro para ver cinema. Vendíamos cocada na rua, juntávamos cobra, alumínio na rua. Fazíamos de tudo, às vezes os pais nem sabiam, gazeávamos aula para ir ao cinema. E havia uma coisa muito interessante: representava um tesouro para a meninada os fotogramas. Normalmente ou tinha nos lixos do cinema ou se comprava dos projecionistas. Pra gente, aquilo tinha um valor muito grande, a gente fazia pequenos cinemas com caixas de sapato. Então, era uma coisa muito viva, muito lúdica. Junto com isso, nós tínhamos os contadores de história tradicionais. Eu diria que foi uma infância simples, mas muito rica sobre essa questão do imaginário, do afeto.

O POVO - Dessa emocionante cachoeira de sons e imagens até os primeiros curtas, nos anos 1970, o que aconteceu para o senhor se tornar realizador?

Rosemberg Cariry - concorria em pé de igualdade com qualquer cinema norte-americano. E tinha também no cine-educadora lá do Crato uma sessão das 16h, que era cinema de arte, digamos, onde a gente via os grandes mestres do cinema europeu. Foi uma época muito feliz para você ter vivido numa cidade do interior e ter acesso a essa informação tão diversificada. Aí nasce a vontade de fazer filme.

O POVO - Mas quando veio a profissionalização?

Rosemberg Cariry - como vai o cinema?". Eu disse: "Olhe, eu tenho um projeto assim, mas tá parado, eu não consigo porque não tem ajuda do Ceará". Ele disse: "Passa lá, que eu quero conversar contigo". E foi assim. Ele perguntou quanto eu precisava pra fazer o filme e me deu o dinheiro. Nós descemos pro sertão e fizemos esse filme. Esse filme foi muito interessante porque praticamente marca o retorno dos filmes brasileiros para os festivais internacionais. Nós viajamos mais de 12 países esse filme. Foi uma grande polêmica na época porque eram atores todos amadores, com cara do Ceará. Mas foi muito legal.

O POVO - E Para o senhor, em nível pessoal, qual a importância do Patativa na sua filmografia e na sua compreensão do mundo como artista?

Rosemberg Cariry - Rosemberg pessoal dizia: "Ah, os guias de cegos, não-sei-o-quê de aleijado".

O POVO - O Isso porque havia resistência em relação às culturas populares?

Rosemberg Cariry - Patativa roceiro, dos sindicatos, dos movimentos políticos. Esse é o Patativa que eu trago, de certa forma, na memória. E tento, nesse filme, uma singela homenagem. O Patativa é de uma grandeza tão grande que esse é só um filme, muitos om certeza virão. Mesmo porque o material que eu tenho sobre ele é muito grande. São horas e horas e horas. É sempre uma coisa arbitrária escolher um poema e não aquele etc. Tem uma cena que é o cotidiano dele com a família, ele fazendo bricandeira com os netos, fazendo poesia pros amigos, gozando. Há coisas interessantíssimas. Acho que de certa forma o importante é que esse acervo vai ser disponibilizado para o Estado. São mais de 100 horas de imagem. Eu diria que mais ainda de áudio, narrativas e entrevistas, que eu penso em disponilizar junto com todos os outros materiais que eu tenho sobre cultura popular. Para que isso fique como patrimônio do povo cearense.

O POVO - Por que o senhor decidiu se debruçar, agora, de novo sobre esse material do Patativa?

Rosemberg Cariry - A morte do Patativa... Nos últimos anos, por conta das minhas viagens ao exterior, eu praticamente não vi mais meu compadre. E não pude visitá-lo doente, antes da morte. Eu soube da morte dele, mas a morte dele não me chegou. A verdade é que não me chegou. Morreu e eu disse não morreu, porque não me chegou. E eu mandei uma equipe gravar os funerais. E eu vi que Patativa estava morto quando eu vi a imagem dele morto. E isso me abalou profundamente. Eu chorei muito, fiquei muito emocionado. Durante anos, eu não quis mexer nesse material. Mesmo porque eu sei, Patativa sempre me dizia - ele nunca tinha medo da morte, se referia como algo muito natural, tinha uma compreensão muito serena, eu diria. A passagem dele pelo mundo foi considerada quase uma missão, e a poesia seria um dom de Deus. Mas eu não quis. O debruçar sobre isso seria o debruçar sobre a minha vida. Tanta coisa que estava ligada a mim, a momentos que eu vivi. E um dia eu resolvi me debruçar sobre esse material. E foi muito difícil. Passei quase três anos mexendo nesse material. Montando e remontando, montando e remontando. E num primeiro momento fiz um filme imenso. Contava a história do século XX inteiro (risos), por meio do Patativa. Na verdade, eu fiz um seriado de cinco filmes por décadas, onde os grandes acontecimentos históricos eram interpretados pela poesia e pela vida dele. Exemplo: em 1922, a Semana de Arte; 1922 ele comprou uma viola. O Martelo Agalopado está sendo inventado no sertão. O povo inventa sua própria transformação e avanço cultural. E por aí saio interpretando muita coisa do país a partir do Patativa e do popular. E fazia experimentação de linguagem. Mas depois eu compreendi que o melhor pra esse filme era ser singelo, que só o Patativa tivesse presente. Então, eu dei um nó nas minhas pretensões de cineasta e deixei que o filme fluísse como um rio, onde Patativa estivesse com toda sua beleza, grandeza, de forma muito natural. Eu diria que é quase uma conversa daquelas de calçada. Antigamente, no sertão, o pessoal botava as cadeiras na calçada à espera da fresca do vento de Aracati. Vinha aquele vento fresco e as pessoas ficavam esperando para começar as conversas. O filme é um pouco isso também. Espero que as pessoas entendam assim. Uma conversa no pé de calçada à espera do vento que sopra. Mas, ao mesmo tempo, é um filme que traz muitas inquietações políticas, que diz muito sobre quem nós somos.

O POVO - Como o senhor falou, o Patativa é um personagem muito rico. O senhor poderia ter ido por vários caminhos, mas resolve focar o viés político do poeta. Essa escolha foi consciente, sabida desde o princípio a montagem?

Rosemberg Cariry - É uma escolha que eu vivi com ele. A grande visibilidade do Patativa acontece nesse período. Ele aparece junto com a luta pela Anistia, das Diretas Já. Patativa aparece no processo de redemocratização do País. Porque naquele momento, historicamente, se necessitava de uma voz coletiva. Quase todos os países e nações do mundo têm seus poetas de expressão nacional. No Brasil, você não tem. Drummond, Mário de Andrade? Naquele momento, Patativa, pelo menos no Nordeste pobre e rebelado, surge como esse poeta de expressão se não nacional pelo menos nordestina. E aí eu fiz essa ligação consciente, porque esse é o momento em que ele publica os livros, ele viaja. Em todos os lugares do mundo, você tem Patativa falando de direitos humanos, democracia. Mas em nenhum momento eu me descuido de um outro Patativa, que recita versos pras crianças, com ligação afetiva com sua esposa, carinhoso com seus amigos. Mas eu quis mostrar que esse foi o auge da maturidade política e poética. É o tempo em que pela primeira vez uma antologia poética do Ceará o inclui. É o momento em que o Zé-ninguém é aceito pela sociedade cearense - antes era espezinhado, negado.

O POVO - O senhor, além de cineasta, é pesquisador das culturas populares nordestinas, escritor, poeta, filósofo. Quais são as dificuldades em lidar com o tema das culturas populares sem cair na estereotipação que tanto idealiza quanto condena?

Rosemberg Cariry - Acho esse um dos grandes perigos. Acho que o que me salvou foi que a gente veio de uma geração que viveu na década de 1960 a contracultura. Tanto uma contracultura que pegava essa cultura popular, muitas vezes, como forma de protesto. Nós pegávamos o Cego Oliveira, arrastávamos da feira e levávamos pra dentro da faculdade, no Crato, e ele fazia uma cantoria inteira. E ele cuspindo no chão. Não só era uma beleza, uma riqueza, pela voz rasgada e tudo, a gente achava que ele era como os grandes músicos americanos de jazz e blues da década de 1920, 1930. E anunciávamos isso. Tínhamos isso da contestação. Jamais nós tocávamos ou nos aproximávamos disso como folclore. Eram pessoas que participavam junto com a gente de uma transformação histórica, em mesmo pé de igualdade. Eles participavam dos nossos movimentos, das nossas peças de teatro, dos nossos filmes, dos nossos livros. É uma relação, eu diria, de amor e de conflito também. Eles eram instrumentos da nossa rebeldia. Ao mesmo tempo em que nós reconhecíamos neles esse valor da ancestralidade. Aconteceu por conta da nossa formação mais acadêmica, clássica, a gente leu muito sobre as culturas européias, medievais, sobre mitologia. E começamos a descobrir nessa cultura não o que se chama de regionalismo, mas nossa possibilidade de comunicação com o mundo. Então o Cego de Oliveira, a gente encontrava esse cego cantando na Idade Média. Descobria que o Martelo Agalopado vinha dos martinetes do século XII da Península Ibérica. Ia buscar as correspondências mouriscas e magrebinas do Norte da África, nessas histórias todas. E, de repente, Cego Oliveira era nosso Homero. A poesia de Patativa era musicada pela moçada nova, da turma da gente. Era tudo muito próximo. Não era aquela coisa de um sacrário intocável da cultura popular e do folclore. Essa cultura popular foi chamada para nos ajudar num processo de transformação social que acreditávamos como possível. E, ao mesmo tempo, tinha nossa militância política.

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