sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Entrevista com o cineasta Rosemberg Cariry



ImprensaBR - Falemos sobre seu último filme: Patativa do Assaré – Ave Poesia. Seria necessário ser poeta também e ser ainda, acima de tudo, ou de quase tudo, nordestino para compreender Patativa, para querer falar de Patativa do Assaré, para homenageá-lo em um filme... uma figura que vive no inconsciente do povo nordestino e, de certa maneira, no inconsciente do brasileiro. Patativa afirmou sua singeleza de homem puro e criativo em sua obra inspirada principalmente na natureza da Serra de Santana, em Assaré. Nela, ele narrou a imagem do sertão e do sertanejo do Nordeste brasileiro. A geograficidade, ou seja, a forma de experimentar a existência na Terra como uma espécie de cumplicidade obrigatória, como chamou o geógrafo francês Eric Dardel, conceituando esse estado de doação e compartilhamento entre os espaços; o humano e o geográfico; foi intensamente o ponto de partida para as criações do poeta e do ser humano Patativa do Assaré. Conte sobre a idéia de fazer o longa-metragem depois de tantos anos de amizade entre você e seu personagem, o próprio Patativa.

Rosemberg Cariry – Na raiz de tudo, está a minha amizade com Patativa do Assaré, que é meu compadre e já era meu ídolo, desde o meu tempo de criança, quando ele freqüentava as feiras do Crato e ia sempre à minha casa, por conta da forte amizade com meu pai. Acompanhei de perto a sua trajetória, a sua luta por justiça, os seus grandes embates políticos, a sua ascensão como um grande nome da cultura brasileira. Depois editei alguns dos seus livros, produzi alguns dos discos e recitais. Durante todo esse período, registrei a vida e as aparições artísticas do mestre, em cinema e vídeo. Embora, antes, eu tenha feito, com Jefferson de Albuquerque Jr, um curta-metragem sobre Patativa, a idéia de fazer um longa-metragem me surgiu de forma muito afetiva. A idéia surgiu com a sua morte, como se o filme, a nível simbólico, pudesse ser a sua ressurreição. Nos últimos anos da vida de Patativa, por conta das minhas viagens, pelo Brasil e pelo exterior, eu praticamente não vi mais meu compadre. E não pude visitá-lo, quando ele já estava doente, antes da sua morte. Eu soube da morte dele por meio de um telefonema de seu filho, mas a morte dele não me chegou como uma verdade definitiva. Patativa já era uma espécie de mito popular, e eu não podia conceber a sua morte. Ele morreu, e eu disse: “não morreu, porque eu não vi” . Como eu estava viajando, dei instruções a uma equipe para que gravasse os funerais. Depois, revendo esse material, vi que Patativa estava morto. E isso me abalou profundamente. Eu chorei muito, fiquei muito emocionado. Durante anos, eu não quis mexer nesse material. Eu tinha dezenas de horas de material gravado, mas não queria me debruçar sobre essa memória, esses sons e essas imagens, pois isso seria mergulhar em boa parte da minha vida, tantas eram as coisas que estavam ligadas a mim, aos momentos que vivera. Um dia, eu resolvi me debruçar sobre esse material. E foi muito difícil. Passei quase três anos mexendo nesse material. Montando e remontando, montando e remontando. E, num primeiro momento, fiz um filme imenso, com seis horas de duração. Eu contava a história do século XX inteiro, pela história do Patativa. Na verdade, eu fiz um seriado de cinco filmes, cada um relatando 20 anos da vida do poeta e dos principais acontecimentos históricos, que eram revistos a partir da poesia e da vida dele. E fazia experimentação de linguagem. Mas depois eu compreendi que o melhor pra esse filme era ser singelo, que o filme fosse apenas um suporte para que o próprio Patativa se revelasse. Então, eu dei um nó nas minhas “pretensões de cineasta” e deixei que o filme fluísse como um rio, onde Patativa estivesse, com toda sua beleza, grandeza, de forma muito natural. Eu diria que o filme é quase uma conversa daquelas de calçada. Antigamente, no sertão, o pessoal botava as cadeiras na calçada à espera da fresca do vento de Aracati. O filme é isso, uma conversa sobre um homem de grande arte e de grande generosidade. Espero que as pessoas entendam assim. Que percebam o filme como uma conversa no pé de calçada à espera do vento que sopra. Mas, ao mesmo tempo, é um filme que traz muitas inquietações políticas, que diz muito sobre quem nós somos.

ImprensaBR - Como você relacionou o seu olhar sertanejo com o de Patativa para chegar ao esboço de uma narrativa para o filme? Qual a contribuição que você, enquanto diretor do filme, deseja dar ao povo brasileiro, ao Nordeste brasileiro quando realiza um filme como Patativa do Assaré – Ave Poesia?

Rosemberg Cariry – Eu quis, com este filme, mostrar a importância e a grandeza desse artista e cidadão brasileiro que foi o Patativa do Assaré. Esse homem, saído da pobreza, que padeceu fome e sofreu muito como roceiro, foi um autodidata, aprendeu a ler sozinho e depois leu os grandes clássicos da literatura. Um homem que levantou a sua voz como um canto generoso de denúncia e de humanidade. Quis mostrar o Patativa da roça, do povo, dos sindicatos, dos recitais estudantis, dos movimentos políticos. Esse é o Patativa que eu trago na memória e a quem presto a minha homenagem. A grande visibilidade do Patativa acontece no período que vai da década de 70 à década de 80. Ele aparece para o grande público junto com a luta pela Anistia, pelas Diretas Já. Patativa aparece no processo de redemocratização do País, como poeta de um povo, como poeta de um sonho de liberdade. Porque, naquele momento, historicamente, se necessitava de uma voz coletiva. Quase todos os países e nações do mundo têm seus poetas de expressão nacional. No Brasil, você não tem. Drummond, Mário de Andrade? Naquele momento, Patativa, pelo menos no Nordeste pobre e rebelado, surge como esse poeta de expressão se não nacional pelo menos nordestina. E aí eu fiz essa ligação consciente, porque esse é o momento em que ele publica os livros, ele viaja. Em todos os lugares do mundo, você tem Patativa falando de direitos humanos, democracia. Mas, em nenhum momento, eu me descuido de um outro Patativa, que recita versos pras crianças, com ligação afetiva com sua esposa, carinhoso com seus amigos. Mas eu quis mostrar que esse foi o auge da maturidade política e poética. É o tempo em que, pela primeira vez, uma antologia poética do Ceará o inclui. É o momento em que o roceiro pobre, o “Zé-ninguém”, é aceito pela sociedade cearense - antes era espezinhado, negado.
Realizar esse filme documentário sobre Patativa do Assaré foi não apenas desvendar a biografia e a obra de um poeta, mas também mergulhar no vasto oceano da cultura coletiva do povo nordestino e tatear os caminhos onde a história individual se encontra com o destino histórico de todo um povo. Para elaboração desse trabalho, foram pesquisadas muitas fontes escritas e da tradição oral; muitos registros audiovisuais e iconográficos. Todo esse material, rico de informações e de suportes variados, destaca a relevância da obra patativiana, o significado político dos seus atos e a sua imensa contribuição à cultura brasileira. Patativa do Assaré participou de importantes momentos políticos brasileiros: ligas camponesas, resistência à ditadura militar, campanha pela Anistia e pelas Diretas Já. Na aérea cultural, foi homenageado pela Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência e participou ainda dos principais movimentos culturais do seu tempo: Movimento de Cultura Popular (MCP – Recife), Festivais de Música Popular Brasileira, Grupo de Arte Por Exemplo e Movimento Nação Cariri, entre tantos outros. A partir de 1970, Patativa do Assaré passou a simbolizar, para os jovens nordestinos, uma voz da resistência e das lutas democráticas. Além da imagem “oficial” do poeta, o documentário mostrará aspectos do cotidiano com a família e com os amigos, no sítio Serra de Santana e na cidade de Assaré, onde é chamado pelo nome carinhoso de “Senhorzinho”. Acredito que o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia é uma obra importante na preservação para gerações futuras de aspectos fundamentais da vida e da obra desse poeta popular que se transformou em um patrimônio cultural e afetivo do povo brasileiro. Um dos principais objetivos é que o filme, além da exibição em salas de cinema, tenha uma grande circulação em organizações populares e seja disponibilizado para rede de TVs educativas, culturais e comunitárias.

ImprensaBR - Você tem uma extensa trajetória como cineasta. Em 1975, no Crato, já produzia seus primeiros curtas-metragens, todos documentários. Em 1980, você começa a trabalhar com cinema de maneira profissional, ainda preferindo o gênero documentário para contar suas histórias sobre o povo e a cultura do nordeste, sua terra natal. Essa influência do cenário nordestino, das sagas fantásticas do homem da seca em busca da terra prometida, a terra da água, aparece como uma assinatura sua em seus filmes, como fora desde seu primeiro longa-metragem, em 1986, “A Irmandade da Santa Cruz do Deserto”, bastante premiado e exibido fora do Brasil. Comente um pouco sobre essa unidade estética em sua obra como cineasta.

Rosemberg Cariry – É verdade, eu trago comigo essa marca do sertão, o sertão não como um local limitado, fechado, mas como terra-sem-porteira, país-do-sem-fim (como concebia Guimarães Rosa). O sertão como encontro de mundos. O Cariri cearense, por conta do movimento religioso do padre Cícero, é o grande caldeirão das culturas populares nordestinas. Eu nasci dentro deste caldeirão. Estudei em seminários, tive contato com os grandes clássicos, mas também convivi com os grandes mestres da cultura popular, os cegos rabequeiros, os cantadores, os poetas cordelistas, os artistas anônimos das feiras. Tive a felicidade de conhecer e ser amigo de grandes mestres da cultura popular. Tudo isso terminou tendo sobre mim uma influência muito forte. Meus filmes traduzem esse universo, sob uma perspectiva universal, porque, na raiz de tudo, não está apenas a região, está o homem, o homem sertanejo expressando a sua herança universal. A cultura do sertão é um encontro das principais vertentes das culturas ocidentais: temos toda uma herança ibérica (católica, judia, moçárabe), toda uma influência da cultura mediterrânea, toda uma influência de culturas africanas e ameríndias, afora os muitos povos que passaram pelo Nordeste durante o brutal processo de colonização. Meus filmes refletem esse (des)encontro de mundos. Acredito que, por muitas razões, a minha obra adquiriu esta unidade narrativa, estética e de reveladora de um universo cultural.

ImprensaBR - Seu trabalho registrando o poeta Patativa do Assaré vem desde 1978; material que, nesses 27 anos, totaliza mais de cem horas de gravação. Em uma entrevista sua, li que você registrou cenas do poeta em diversos suportes: Super-8, 16mm, 35mm, U-Martic, Betacam. Quando você começou a selecionar esse material para a realização do longa Patativa do Assaré – Ave Poesia? E o processo de montagem do filme, como foi?

Rosemberg Cariry - Eu filmava e registrava Patativa com o que tinha nas mãos, nos diversos períodos, em que convivemos. Eu usei Super 8, 16mm, Vídeo U-matic, Betacam, Vídeo digital etc. Fui acompanhado a revolução tecnológica. Isso resultou em um importante acervo sobre a memória desse grande artista brasileiro. Terminei por fazer um longa-metragem, mas acontece que Patativa é de uma grandeza que não cabe em um só filme. Muitos outros com certeza virão, mesmo que sejam realizados por outros. O material que eu tenho sobre ele possibilitará outras abordagens, como a relação de Patativa do Assaré com a natureza. Ele sempre foi um grande defensor da natureza. Quando estamos montando um filme, é sempre uma coisa arbitrária escolher um poema e não outro etc. Muita coisa importante fica de fora. Ficaram de fora cenas do cotidiano dele com a família, ele fazendo brincadeiras com os netos, fazendo poesia pros amigos, fazendo versos picarescos etc. Há coisas interessantíssimas. Acho que, de certa forma, o importante é que esse acervo vai ser disponibilizado para o Estado. Vou disponibilizar esse material para o Arquivo Nacional. São mais de 100 horas de imagem. Afora as muitas horas de áudio, narrativas e entrevistas, que eu penso em disponibilizar junto com todos os outros materiais que eu tenho sobre cultura popular. Esse tesouro deve pertencer ao povo brasileiro. Não quero a propriedade desse acervo.

ImprensaBR - O filme já esteve em vários festivais brasileiros no ano passado. Participou do 17º Cine Ceará, um festival já consolidado no estado e um dos mais importantes do Brasil, onde foi lançado oficialmente. Em quais festivais o filme já foi exibido? E como ele tem sido recebido pelo público e pela crítica?

Rosemberg Cariry – O filme Patativa do Assaré – Ave Poesia teve a sua estréia em Fortaleza, e este foi um momento de intensa emoção, com milhares de pessoas aplaudindo em pé o velho mestre. Fiquei muito emocionado com aquela manifestação. O jornal O Estado de São Paulo refere-se a este momento como “a comoção Patativa”. Foi realmente um momento muito bonito, acho que foi um dos acontecimentos mais significativos de toda a minha carreira de cineasta, nestes quase 35 anos de trabalho árduo e sem tréguas. Depois disso, o filme participou de algumas mostras de cinema no Brasil e no exterior. Agora depois da Mostra do Rio das Ostras, estou liberando o filme para que ele siga o seu próprio caminho, com exibições em acampamentos de sem-terra, em mostras universitárias, em bairros e favelas, em cineclubes etc. Haverá também, no começo do ano, exibição de cópias em 35mm em algumas salas alternativas. O destino desse filme é ser do povo, assim como Patativa do Assaré era um poeta do povo. Outro dia, encontrei cópias do filme sendo vendidas nas romarias, com capas feitas de xilogravuras, com intervenções dentro do próprio filme, um artista popular cantando um bendito que falava de Patativa e do Padre Cícero. Pensei comigo: se nós podemos realizar filmes a partir da cultura popular, por que esta mesma cultura não pode utilizar-se dos nossos filmes? Gostei do que vi. Quanto à crítica, tem sido muito positiva, já foram escritos alguns ensaios sobre o filme, e alguém me contatou recentemente querendo fazer uma tese de mestrado. É legal toda essa movimentação em torno do filme.

ImprensaBR - Como está a campanha de lançamento do filme fora do Brasil?

Rosemberg Cariry – O filme já foi traduzido para o espanhol. Estamos agora fazendo uma cuidadosa tradução do filme para o francês e o inglês. Não é fácil traduzir a poesia de Patativa, com seu dialeto caboclo. A partir destas cópias legendadas, os filme entrará no circuito de algumas televisões culturais da América Latina e participará de mostras na Europa, bem como de seminários e simpósios sobre Patativa. Em março de 2009, comemoram-se os 100 Anos de Nascimento do Poeta Patativa do Assaré. No Ceará, e em todo o País, acontecerão seminários e mostras. Vou disponibilizar o filme para todos esses eventos. É uma forma de preservação da memória do grande poeta.

ImprensaBR - Em uma entrevista concedida a um grande jornal de Fortaleza, em março do ano passado, você comentou que o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia tem muitas chances de ser distribuído nacionalmente, por causa do interesse em torno da figura de Patativa do Assaré. "Não é um filme de grandes vôos comerciais, mas que deve despertar interesse das televisões públicas e universitárias, circular nas escolas e entrar no circuito cultural e artístico". Quando o filme chegará ao circuito comercial? Quantas cópias o filme têm e em quais estados inicialmente ele será exibido?

Rosemberg Cariry – Como eu já falei, o grande espaço do filme Patativa do Assaré será dentro dos movimentos culturais e sociais, uma coisa mais orgânica, participante da história. Além das chamadas salas de cinema de arte, o filme estará presente em cineclubes, em associações de bairros e favelas, em grêmios estudantis, em diretórios acadêmicos, em clubes de terceira idade, em movimentos dos sem-terra, em sindicatos operários, em organizações católicas sociais etc. Acho que esse é o destino do filme, ele precisa ir de encontro ao povo e ajudar na reflexão e na luta pela transformação da dolorosa realidade em que vivemos.

ImprensaBR - Como você vê a participação dos universitários e da sociedade civil no debate sobre a implantação da TV Pública?

Rosemberg Cariry – Vejo como sendo de fundamental importância. Sempre fui defensor de uma TV Pública no Brasil que fosse um espelho da nossa diversidade cultural, dos diversos brasis, da imensa criatividade do povo brasileiro. A saída do Orlando Senna da TV Brasil foi uma perda muito grande para essa visão mais generosa de uma televisão aberta, democrática e identificada com as lutas e os sonhos do povo brasileiro e latino-americano. Orlando Senna é um homem de visão larga e de grande generosidade, além de um grande senso de responsabilidade para com a nação brasileira. A sociedade civil tem que estar presente neste debate e reivindicar a democratização dos espaços. A grande luta hoje é por uma reforma no ar, que seja capaz de espalhar centenas de TVs e rádios comunitárias.

ImprensaBR - Ao afirmar que o filme deve ficar restrito aos circuitos artísticos, você insere Patativa do Assaré – Ave Poesia entre os filmes de arte ou cinema de arte. O que é necessário para que esse paradigma entre cinema comercial e cinema independente e de arte – que, muitas vezes, pode ser interpretado como um ponto negativo para a vida comercial de um filme - seja rompido?

Rosemberg Cariry – Essa divisão entre “cinema comercial” e “cinema de arte”, para mim, é uma coisa recente, imposta pelo comércio. Lembro-me que, nos anos 60, na cidade do Crato, no interior do Ceará, existiam seis cinemas, e neles nós víamos de tudo. De filmes de aventuras norte-americanos a filmes dos grandes diretores europeus, além de filmes de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Carlos Manga, Paulo Gil Soares, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Coimbra, Anselmo Duarte, Lima Barreto, além de muitos outros diretores. Víamos O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro como víamos um faroeste ou um filme de capa e espada. Sem divisões rígidas. E digo mais: adorávamos os filmes de Glauber da fase sertânica, para nós aqueles filmes eram aventuras e encantamento. Só depois é que resolvem prender esses filmes em nichos de mercado e em rótulos obscuros.

ImprensaBR - Como, você, que, antes de lançar Patativa do Assaré - Ave e Poesia, ficou seis anos sem fazer um novo trabalho para o cinema, avalia a produção de cinema no Ceará, atualmente? Comente as iniciativas do governo para a produção local. Bahia e Pernambuco também vivem um momento especial para a produção de audiovisual. Dê sua opinião sobre este bom momento para o cinema nordestino.

Rosemberg Cariry – O Ceará forma, hoje, juntamente com Pernambuco e Bahia, um dos grandes pólos de produção do Nordeste. Temos uma produção constante que consegue uma boa visibilidade em festivais nacionais e internacionais e circula nas salas de exibição. Temos uma nova geração de realizadores que têm se destacado pela inventividade, pela ousadia estética e pela proposta de novos argumentos. Os altos e baixos, ocasionados pela política pública para a cultura, não conseguiram interromper o fluxo criativo e produtivo do cinema no Ceará e na região. Pernambuco deu um grande salto de qualidade no cinema produzido na região e a Bahia, tradicional centro produtor na década de 60, retomou o seu papel. Temos assim, no Nordeste, uma cinematografia fresca, instigante, criativa. A grande renovação do cinema brasileiro está vindo do Nordeste.

ImprensaBR - Numa visão mais ampla, em nível nacional, como, em sua avaliação, estão funcionando as iniciativas do governo federal para o fomento à indústria cinematográfica brasileira no que diz respeito à produção, distribuição, exibição e à preservação das obras audiovisuais brasileiras?

Rosemberg Cariry – Durante a gestão do ministro Gilberto Gil, com a presença de Orlando Senna na secretaria do audiovisual, tivemos um grande impulso no desenvolvimento do audiovisual brasileiro, principalmente com os programas que nacionalizavam, ou descentralizavam, a produção, redistribuindo recursos para os pólos produtivos nas regiões mais diversas, bem como incentivando festivais, mostras e seminários, em todo o território nacional. Programas como os editais para filmes longa-metragem de baixo orçamento, DOCTV e Revelando os Brasis mostraram ser de grande eficácia, com resultados muito animadores. Os convênios e a renovação de equipamentos da Cinemateca Brasileira, do Centro Técnico Audiovisual e do Arquivo Público Nacional demonstram uma preocupação com a preservação da memória audiovisual brasileira. O grande problema, no entanto, é a distribuição. Os filmes brasileiros não conseguem chegar às salas de exibição nem à televisão. A grande exceção é o Canal Brasil, que só passa filmes brasileiros e a TV Brasil, que começa também a colocar filmes brasileiros em sua grade. O novo ministro da Cultura, Juca Ferreira, com certeza, dará continuidade a essa política de descentralização e valorização do audiovisual brasileiro e estará propondo novas medidas para resolver a questão da distribuição e da exibição na TV. O ministro é um profundo conhecedor do cinema brasileiro e tentará solucionar esses problemas, acredito.

ImprensaBR - Além de cineasta, você é filósofo por formação e escritor, já tendo lançado diversos livros, inclusive com outros autores. Em sua trajetória, você sempre atuou como militante no cenário cultural do Ceará, tendo participado de movimentos culturais significativos para a história do estado e de nosso país. Sem meias palavras, Rosemberg, comente sua biografia.

Rosemberg Cariry – Sou um homem do sertão que ama as pessoas e as paisagens do mundo e tenta ser coerente consigo mesmo e com a sua herança de humanidade.

ImprensaBR - Quais seus projetos futuros?

Rosemberg Cariry – Estou me preparando para rodar um filme pelo interior do Piauí, Ceará, Paraíba e Alagoas. O projeto se chama o Auto de Lampião no Além. Inspirado no cordel A Chegada de Lampião no Inferno. O filme conta as peripécias do Circo Teatro Piripiri, a partir do Delta do Parnaíba, com seus palhaços, atores e artistas populares, perambulando por pequenas cidades e vilas dos sertões, apresentando o “Auto de Lampião no Além”. No Auto, o inferno está em crise, e Lúcifer vê-se obrigado a aliar-se ao capital financeiro internacional. Essa aliança é traduzida nas diversas formas de exploração política, social e econômica do homem. A nova desordem do mundo, por outro lado, termina por inflacionar a população de “almas condenadas” no inferno. Para piorar a situação de crise, com repercussões desastrosas para todos os setores do inferno, chega a notícia de que o bando de Lampião e Maria Bonita, escorraçado do céu por São Pedro, aproxima-se para ali se acoitar, ameaçando tocar fogo no inferno. Lampião derruba a porta do inferno e lá encontra Lúcifer e Cão Gasolina, que, tomados de pavor, se submetem ao novo governador das fornalhas tenebrosas - mas, para tanto, pretende submeter-se a uma eleição no inferno. Lampião recua de seu intento diante das tentativas de Lúcifer de fraudar o pleito, e, por sugestão do cangaceiro e cantador Zabelê, é estabelecido que a disputa se dará na forma de desafio de viola entre o próprio Zabelê e o Cão Gasolina, representante de Lúcifer. Zabelê vence o desafio. Administrar o inferno não é tarefa fácil para Lampião. Os desentendimentos com Lúcifer são constantes, e o cangaceiro decide afastá-lo de suas funções. As coisas não melhoram, até que, um dia, no inferno, aparece (em visão) o Padim Ciço orientando Lampião a retornar ao sertão nordestino. Obediente, Lampião aceita o divino apelo. A atitude do bando é encarada por Lúcifer como uma vitória, pois, como o público descobrirá depois, tudo não passa de embuste do ardiloso Cão Gasolina.
Durante a trajetória do circo pelo interior do Piauí, acontece um farsesco triângulo amoroso entre Lazarino (desabusado ator que faz o papel do Cão Gasolina), Zeferino (proprietário do circo, mulherengo e dublê de ator) e Creuza (a bonita, gostosa e libidinosa mulher de Zeferino). O picaresco Lazarino envolve-se ainda em muitas aventuras e desventuras pelo sertão, ao modo dos anti-heróis picarescos e populares da literatura de cordel, que, pela artimanha e esperteza, derrotam os ricos, os poderosos, os doutores e os padres que se colocam em seu caminho.

ImprensaBR - Como recebeu o convite para participar da 2ª Mostra do Filme Ambiental e Etnográfico de Rio das Ostras? Será a primeira vez que um filme seu será exibido publicamente na cidade, você sabia?

Rosemberg Cariry - Não,não sabia. Eu fico muito contente com o convite, com essa possibilidade de mostrar o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia para esse novo público, em um festival que começa a se firmar pela sua relevância cultural e a sua preocupação com a diversidade cultural do povo brasileiro e com a preservação do meio ambiente. Ainda não conheço Rio das Ostras, mas já ouvi falar das suas belezas. Espero um dia conhecer este pedaço mágico do Brasil.

ImprensaBR - Qual a importância de mostras, festivais, cineclubes em cidades do interior do Brasil, onde o cinema nacional ainda só chega pelas telas da TV ou em títulos norte-americanos, levadas a salas de shoppings, nos chamados circuitões?

Rosemberg Cariry – Considero da maior importância esse crescimento de jornadas, festivais, mostras e exibições do nosso cinema nas mais diversas regiões do País... Do Oiapoque ao Chuí, dos sertões da Paraíba ao planalto central, do pantanal aos pampas, do Rio das Ostras aos Lençóis Maranhenses. Vivemos um momento privilegiado desse encontro do cinema nacional com o seu público, além dos debates, dos cursos de formação audiovisual, dos prêmios, dos incentivos. Acredito, mesmo, que essa nova onda de festivais por todo o Brasil fará surgir uma nova geração de cineastas e videoastas que alargarão os horizontes da cinematografia brasileira nas próximas décadas. Sou contra, enquanto cineasta e também diretor da Associação de Produtores e Cineastas do Norte e Nordeste - APCNN, qualquer corte nas verbas para os festivais. O que precisamos é ampliar ainda mais a realização desses festivais que passam a ter importância cultural e econômica em cada uma das regiões onde se realizam.

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Currículo resumido do diretor
Natural do município cearense de Farias Brito, nascido em 1953, Rosemberg Cariry é filósofo de formação, poeta com cinco livros lançados e um dos fundadores do movimento de arte e cultura Nação Cariri. Como cineasta, estreou em 1986 com o documentário O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. No currículo, possui ainda os filmes A Saga do Guerreiro Alumioso (1993), Corisco e Dadá (1995), A TV e o Ser-Tão (1999), Pedro Oliveira, o Cego que Viu o Mar (1999); Juazeiro, a Nova Jerusalém (1999); Lua Cambará - Nas Escadarias do Palácio (2002), Cine Tapuia (2006) e Siri-Ará (2008). É ainda proprietário da Cariri Filmes, empresa especializada em produções audiovisuais.
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Leonor Bianchi

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