sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009



JORNAL – DIÁRIO DO NORDESTE

Fortaleza, 03 de junho de 2007
O poeta e o cineasta


Rosemberg: da proximidade, quase intimidade, com o poeta popular, nasceu o filme ´Patativa do Assaré – Ave Poesia´ (Foto: Gustavo Pellizzon) As imagens de um tempo passado, de quando o poeta popular Patativa do Assaré ainda não tinha a dimensão atual - e apenas encantava a própria comunidade - são trazidas pelas lentes do cineasta Rosemberg Cariry, do filme “Patativa do Assaré – Ave Poesia”. Cariry revela momentos únicos na vida do poeta e nesta entrevista lembra como foi todo o processo de construção do filme a ser exibido no 17° Cine Ceará, amanhã, no Centro Cultural Sesc Luiz Severiano Ribeiro


Como foi a primeira dessas gravações com o Patativa, que resultou no filme?


A primeira vez que filmamos foi em Assaré, por volta de 79, fotografado em super 8, pelo Jackson Bantim e o Luís Carlos Salatiel. Registramos o cotidiano dele, na roça, Dona Belinha cozinhando... Quando cheguei lá, era um amigo que estava chegando, era o filho de Zé Moura, que já tinha laços afetivos fortes. Passamos uma semana com ele dessa primeira vez, e o que me lembro era do cheiro do inverno na terra. O flamboyant, ele sentado naquela raiz, que virou quase um símbolo depois do Patativa, do homem enraizado. Foi a época em que ele foi homenageado pela SBPC, reconhecimento pioneiro de um poeta popular. E nós fizemos um grande show no Theatro José de Alencar, chamado “Canta Cariri”, e um recital do Patativa. Documentamos em super 8 o encontro dele com toda a geração ligada ao movimento de esquerda que na época se aproximou muito do Patativa. Ele virou uma voz. A gente acreditava que as nações tinham seus poetas, Neruda, Maiakovski... E a gente achava que o Patativa era esse poeta da expressão nacional, ou pelo menos nordestina.


Em todas essas ocasiões, você foi acumulando material de gravação...


É, e esse material ficou aí durante muito tempo. Depois eu me debrucei sobre acervos particulares, públicos, de TVs. Acho que Patativa foi uma das figuras mais fotografadas, filmadas e documentadas das artes do Ceará, as pessoas faziam verdadeiras romarias à casa do Patativa. Tanto que ele não morreu só, morreu cercado pelo povo. Eram ônibus e mais ônibus, todo mundo queria ver o Patativa, queria uma foto com ele. Todo mundo tem uma história do Patativa pra contar, um verso pra dizer. Foi o poeta de expressão popular.


Ao longo dos anos, foram tantas tentativas de apreender o que seria Patativa, pelo olhar sociológico, antropológico, político, lírico... De que forma você avaliou que faltava ele ser mostrado?


Eu acho que o Patativa é isso mesmo e vai ser sempre assim: um poeta de uma grandeza tamanha que vai ter sempre múltiplas interpretações. A compreensão ecológica, o poeta extraordinário, de enorme sensibilidade no trato com a compreensão da alma humana, o cronista dos costumes do sertão... Há uma representação do Patativa, que é muito dura, concreta, de quem viveu aquilo tudo, mas há uma outra dimensão mais interna, de quem viveu dentro do sertão e teve o sertão dentro de si. E há o poema dele que diz que as almas boas ficam pela terra, fazendo caracol sobre o sertão, levantando a poeira dessa terra. Uma forma telúrica e ao mesmo tempo cósmica. Agora, uma dimensão pouco conhecida é a do Patativa religioso. Ele tinha noção, muito consciente, da grandeza da sua arte. Sempre se considerou, de certa forma, um instrumento de Deus. É como se fosse apenas um instrumento de uma vontade muito maior. “O poeta é sobrenaturá”... Daí a humildade.


Tendo tanto material, e um material de um ponto de vista tão privilegiado, por que a opção de deixar o filme com não mais que 80 minutos?


Montei cinco episódios de uma hora cada. Então é um filme de cinco horas, dividido da seguinte forma: décadas de 10 e 20 num filme, 30 e 40 noutro, e assim por diante, de modo que abordo os grandes acontecimentos do século XX a partir da poética e da visão do Patativa. É possível que depois esse material, que é mais experimental, tenha uma circulação de TV. Resolvi fazer o filme de 80 minutos por conta da possibilidade das pessoas verem em salas de cinema, universidades. Não tive a preocupação de montar um filme de grandes exercícios estéticos. Deixei o cineasta um pouco mais de lado, deixando que o filme fosse o suporte da grandeza, com a mesma simplicidade, singeleza e força - o que é uma pretensão muito grande. Mas a idéia foi essa. Mostro praticamente toda a história da década de 60 e 70, até a redemocratização, e redimensiono a partir da poesia do Patativa: Figueiredo, Médici , a Transamazôncia, essas coisas. Tem toda uma leitura política. Estou terminando ainda esse material mais extenso. Na verdade, todo o meu acervo do Patativa, que somado deve ter mais de 100 horas de gravação, eu vou disponibilizar pro Estado. Quero que se transforme num patrimônio público.

Dentro de todas essas possibilidades, qual foi o seu critério para esse filme?

Quando o Patativa morreu, eu estava viajando. E a notícia na mídia foi fria. “Patativa morreu”. Um poeta como Patativa não morre. Ele já estava num processo de transformação em mito. Eu pedi a um pessoal que documentasse o velório. Durante muito tempo, eu não quis ver essas imagens, porque foi realmente uma dor profunda, ver a imagem do Patativa morto. Ao mesmo tempo, era uma imagem importante, uma virtualidade. E foi essa virtualidade que me levou à compreensão de uma coisa concreta: a morte, a finitude. Aí resolvi começar o filme com um redemoinho no sertão, até a poeira secar, como se fosse o espírito. A partir daí a gente passa pro velório, e Patativa recita como se estivesse vivo. E daí contamos a vida dele. E termino o filme com uma criança andando na vastidão do sertão, ele dizendo como foi que nasceu, em que ano, no poema chamado “Autobiografia”, em que ele diz que aprendeu tudo quanto sabia lendo aquele livro da natureza. Essa é uma imagem muito forte, porque não se vê nada ali. E ele viu tudo.


Que outros aspectos da vida dele estão presentes no filme?


Tem um depoimento que ele fala da importância das crianças pra vida dele. E a partir daí passo pelas ligas camponesas, pelo movimento de luta pela reforma agrária. Consegui depoimentos de pessoas que estavam no Partido Comunista, falam sobre os jornais comunistas que ele lia. De certa forma, mostro um outro lado do Patativa que é um pouco nebuloso, essa ligação um pouco clandestina com o movimento sindical. Tem um momento dele dizendo que já tinha lido Max. Isso não quer dizer muito, mas é curioso. Porque a poesia dele é maior que uma dimensão política no sentido doutrinário. A política dele é muito maior, o homem, a terra, o direito à felicidade. Tem que se compreender que mesmo nossa geração querendo um Patativa socialista, ele era esse socialista. Mas era um socialista cristão.


Com todo interesse da mídia, Patativa certamente não ficou imune ao assédio. Como é que ele lidava com o fato de ter uma câmera à frente?


Ele agia com muita naturalidade. Os nossos diálogos terminavam sendo conversas, e o que é interessante é que nessas conversas ele revelava muitas coisas, tanto sobre política, quanto coisas engraçadas, coisas sobre amigos... Agora, com relação à mídia, é tamanha sagacidade de Patativa, que ele sempre teve a mídia como instrumento. Eu não acho que Patativa foi usado pela mídia; acho que ele usou a mídia muito bem. Ele sabia sempre fazer, colocar na pena do jornalista aquilo que ele queria dizer. Sabia que jornal era, como era, que tendência tinha, e que recado ele queria mandar. Sabia muito bem onde estava pisando. De tal forma que a imagem pública do Patativa é de certa forma construída. Ele sabia o que era o Patativa público e o que era ele mesmo.


Mas você sentia uma diferença ao ligar a câmara, ou você preferia apostar no documentário por um olhar pretensamente neutro, abstraindo a câmara?


No meu caso, era diferente porque eu fazia parte desse círculo de amizade, de compadrio. Eu sempre ia visitá-lo. Mas acho que sempre que iam jornalistas, imprensa, TV, ele sabia como se portar e o que dizer. E olhando os jornais de cada momento político daqueles, você percebe que ele tá passando a mensagem que ele queria direitinho.


Pra concluir, qual sua avaliação do momento do audiovisual cearense? Por que tão poucos longas estão sendo produzidos?


É até uma coisa excepcional, eu estar estreando os longas: além do Patativa, o “Cine Tapuia”, que é mais um filme meu que termina nessa pergunta, de quem somos, qual a nossa identidade. Tem a Myrlla Muniz, Rodger Rogério, uma homenagem também que faço ao Cego Aderaldo. Acho que cinema virou uma cosia de seleção da vida e uma forma generosa de homenagear pessoas que considero importantes. Dedico o filme ao Nelson Pereira, inclusive. Mas tive muita dificuldade pra fazer, passeis seis, sete anos pra fazer. Estamos num momento muito difícil no Ceará. Já fomos o terceiro pólo produtor, e fomos retrocedendo e retrocedendo a ponto de, durante a gestão da Cláudia (Leitão, secretária de Cultura do Governo do Estado durante a gestão Lúcio Alcântara, de 2003 a 2006), ter se tornado uma coisa realmente desastrosa. Ter acabado o Instituto Dragão do Mar, com a efervescência que havia do audiovisual, o longa-metragem praticamente desaparece. Enquanto isso, Pernambuco deu um salto, a Bahia chegou e também saltou, estão falando em um pólo de 100 milhões por ano pra produção, Pernambuco está fazendo 10 longas por ano. E o Ceará, que começou a conquistar um espaço nacional e internacional, com vários prêmios, que não se cria de uma hora pra outra, leva tempo e amadurecimento, tem que recomeçar do zero. É uma coisa muito dolorosa. O nosso cinema é um espelho quebrado.

(DALWTON MOURA – Repórter)

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Portal VERMELHO
4 DE JUNHO DE 2007 - 08h39
Rosemberg Cariry - O poeta e o cineasta


As imagens de um tempo passado, de quando o poeta popular Patativa do Assaré ainda não tinha a dimensão atual - e apenas encantava a própria comunidade - são trazidas pelas lentes do cineasta Rosemberg Cariry, do filme “Patativa do Assaré – Ave Poesia”. Cariry revela momentos únicos na vida do poeta e fala sobre como foi todo o processo de construção do filme a ser exibido no 17° Cine Ceará, hoje, no Centro Cultural Sesc Luiz Severiano Ribeiro

Cariry fala sobre Patativa do Assaré

Como foi a primeira dessas gravações com o Patativa, que resultou no filme?

A primeira vez que filmamos foi em Assaré, por volta de 79, fotografado em super 8, pelo Jackson Bantim e o Luís Carlos Salatiel. Registramos o cotidiano dele, na roça, Dona Belinha cozinhando... Quando cheguei lá, era um amigo que estava chegando, era o filho de Zé Moura, que já tinha laços afetivos fortes. Passamos uma semana com ele dessa primeira vez, e o que me lembro era do cheiro do inverno na terra. O flamboyant, ele sentado naquela raiz, que virou quase um símbolo depois do Patativa, do homem enraizado. Foi a época em que ele foi homenageado pela SBPC, reconhecimento pioneiro de um poeta popular. E nós fizemos um grande show no Theatro José de Alencar, chamado “Canta Cariri”, e um recital do Patativa. Documentamos em super 8 o encontro dele com toda a geração ligada ao movimento de esquerda que na época se aproximou muito do Patativa. Ele virou uma voz. A gente acreditava que as nações tinham seus poetas, Neruda, Maiakovski... E a gente achava que o Patativa era esse poeta da expressão nacional, ou pelo menos nordestina.

Em todas essas ocasiões, você foi acumulando material de gravação..
.
É, e esse material ficou aí durante muito tempo. Depois eu me debrucei sobre acervos particulares, públicos, de TVs. Acho que Patativa foi uma das figuras mais fotografadas, filmadas e documentadas das artes do Ceará, as pessoas faziam verdadeiras romarias à casa do Patativa. Tanto que ele não morreu só, morreu cercado pelo povo. Eram ônibus e mais ônibus, todo mundo queria ver o Patativa, queria uma foto com ele. Todo mundo tem uma história do Patativa pra contar, um verso pra dizer. Foi o poeta de expressão popular.

Ao longo dos anos, foram tantas tentativas de apreender o que seria Patativa, pelo olhar sociológico, antropológico, político, lírico... De que forma você avaliou que faltava ele ser mostrado?

Eu acho que o Patativa é isso mesmo e vai ser sempre assim: um poeta de uma grandeza tamanha que vai ter sempre múltiplas interpretações. A compreensão ecológica, o poeta extraordinário, de enorme sensibilidade no trato com a compreensão da alma humana, o cronista dos costumes do sertão... Há uma representação do Patativa, que é muito dura, concreta, de quem viveu aquilo tudo, mas há uma outra dimensão mais interna, de quem viveu dentro do sertão e teve o sertão dentro de si. E há o poema dele que diz que as almas boas ficam pela terra, fazendo caracol sobre o sertão, levantando a poeira dessa terra. Uma forma telúrica e ao mesmo tempo cósmica. Agora, uma dimensão pouco conhecida é a do Patativa religioso. Ele tinha noção, muito consciente, da grandeza da sua arte. Sempre se considerou, de certa forma, um instrumento de Deus. É como se fosse apenas um instrumento de uma vontade muito maior. “O poeta é sobrenaturá”... Daí a humildade.

Tendo tanto material, e um material de um ponto de vista tão privilegiado, por que a opção de deixar o filme com não mais que 80 minutos?

Montei cinco episódios de uma hora cada. Então é um filme de cinco horas, dividido da seguinte forma: décadas de 10 e 20 num filme, 30 e 40 noutro, e assim por diante, de modo que abordo os grandes acontecimentos do século XX a partir da poética e da visão do Patativa. É possível que depois esse material, que é mais experimental, tenha uma circulação de TV. Resolvi fazer o filme de 80 minutos por conta da possibilidade das pessoas verem em salas de cinema, universidades. Não tive a preocupação de montar um filme de grandes exercícios estéticos. Deixei o cineasta um pouco mais de lado, deixando que o filme fosse o suporte da grandeza, com a mesma simplicidade, singeleza e força - o que é uma pretensão muito grande. Mas a idéia foi essa. Mostro praticamente toda a história da década de 60 e 70, até a redemocratização, e redimensiono a partir da poesia do Patativa: Figueiredo, Médici , a Transamazôncia, essas coisas. Tem toda uma leitura política. Estou terminando ainda esse material mais extenso. Na verdade, todo o meu acervo do Patativa, que somado deve ter mais de 100 horas de gravação, eu vou disponibilizar pro Estado. Quero que se transforme num patrimônio público.

Dentro de todas essas possibilidades, qual foi o seu critério para esse filme?

Quando o Patativa morreu, eu estava viajando. E a notícia na mídia foi fria. “Patativa morreu”. Um poeta como Patativa não morre. Ele já estava num processo de transformação em mito. Eu pedi a um pessoal que documentasse o velório. Durante muito tempo, eu não quis ver essas imagens, porque foi realmente uma dor profunda, ver a imagem do Patativa morto. Ao mesmo tempo, era uma imagem importante, uma virtualidade. E foi essa virtualidade que me levou à compreensão de uma coisa concreta: a morte, a finitude. Aí resolvi começar o filme com um redemoinho no sertão, até a poeira secar, como se fosse o espírito. A partir daí a gente passa pro velório, e Patativa recita como se estivesse vivo. E daí contamos a vida dele. E termino o filme com uma criança andando na vastidão do sertão, ele dizendo como foi que nasceu, em que ano, no poema chamado “Autobiografia”, em que ele diz que aprendeu tudo quanto sabia lendo aquele livro da natureza. Essa é uma imagem muito forte, porque não se vê nada ali. E ele viu tudo.

Que outros aspectos da vida dele estão presentes no filme?

Tem um depoimento que ele fala da importância das crianças pra vida dele. E a partir daí passo pelas ligas camponesas, pelo movimento de luta pela reforma agrária. Consegui depoimentos de pessoas que estavam no Partido Comunista, falam sobre os jornais comunistas que ele lia. De certa forma, mostro um outro lado do Patativa que é um pouco nebuloso, essa ligação um pouco clandestina com o movimento sindical. Tem um momento dele dizendo que já tinha lido Marx. Isso não quer dizer muito, mas é curioso. Porque a poesia dele é maior que uma dimensão política no sentido doutrinário. A política dele é muito maior, o homem, a terra, o direito à felicidade. Tem que se compreender que mesmo nossa geração querendo um Patativa socialista, ele era esse socialista. Mas era um socialista cristão.

Com todo interesse da mídia, Patativa certamente não ficou imune ao assédio. Como é que ele lidava com o fato de ter uma câmera à frente?

Ele agia com muita naturalidade. Os nossos diálogos terminavam sendo conversas, e o que é interessante é que nessas conversas ele revelava muitas coisas, tanto sobre política, quanto coisas engraçadas, coisas sobre amigos... Agora, com relação à mídia, é tamanha sagacidade de Patativa, que ele sempre teve a mídia como instrumento. Eu não acho que Patativa foi usado pela mídia; acho que ele usou a mídia muito bem. Ele sabia sempre fazer, colocar na pena do jornalista aquilo que ele queria dizer. Sabia que jornal era, como era, que tendência tinha, e que recado ele queria mandar. Sabia muito bem onde estava pisando. De tal forma que a imagem pública do Patativa é de certa forma construída. Ele sabia o que era o Patativa público e o que era ele mesmo.

Mas você sentia uma diferença ao ligar a câmera, ou você preferia apostar no documentário por um olhar pretensamente neutro, abstraindo a câmera?

No meu caso, era diferente porque eu fazia parte desse círculo de amizade, de compadrio. Eu sempre ia visitá-lo. Mas acho que sempre que iam jornalistas, imprensa, TV, ele sabia como se portar e o que dizer. E olhando os jornais de cada momento político daqueles, você percebe que ele tá passando a mensagem que ele queria direitinho.

Pra concluir, qual sua avaliação do momento do audiovisual cearense? Por que tão poucos longas estão sendo produzidos?

É até uma coisa excepcional, eu estar estreando os longas: além do Patativa, o “Cine Tapuia”, que é mais um filme meu que termina nessa pergunta, de quem somos, qual a nossa identidade. Tem a Myrlla Muniz, Rodger Rogério, uma homenagem também que faço ao Cego Aderaldo. Acho que cinema virou uma cosia de seleção da vida e uma forma generosa de homenagear pessoas que considero importantes. Dedico o filme ao Nelson Pereira, inclusive. Mas tive muita dificuldade pra fazer, passeis seis, sete anos pra fazer. Estamos num momento muito difícil no Ceará. Já fomos o terceiro pólo produtor, e fomos retrocedendo e retrocedendo a ponto de, durante a gestão da Cláudia (Leitão, secretária de Cultura do Governo do Estado durante a gestão Lúcio Alcântara, de 2003 a 2006), ter se tornado uma coisa realmente desastrosa. Ter acabado o Instituto Dragão do Mar, com a efervescência que havia do audiovisual, o longa-metragem praticamente desaparece. Enquanto isso, Pernambuco deu um salto, a Bahia chegou e também saltou, estão falando em um pólo de 100 milhões por ano pra produção, Pernambuco está fazendo 10 longas por ano. E o Ceará, que começou a conquistar um espaço nacional e internacional, com vários prêmios, que não se cria de uma hora pra outra, leva tempo e amadurecimento, tem que recomeçar do zero. É uma coisa muito dolorosa. O nosso cinema é um espelho quebrado.

De Fortaleza, Dalwton Moura

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Entrevista com o cineasta Rosemberg Cariry



ImprensaBR - Falemos sobre seu último filme: Patativa do Assaré – Ave Poesia. Seria necessário ser poeta também e ser ainda, acima de tudo, ou de quase tudo, nordestino para compreender Patativa, para querer falar de Patativa do Assaré, para homenageá-lo em um filme... uma figura que vive no inconsciente do povo nordestino e, de certa maneira, no inconsciente do brasileiro. Patativa afirmou sua singeleza de homem puro e criativo em sua obra inspirada principalmente na natureza da Serra de Santana, em Assaré. Nela, ele narrou a imagem do sertão e do sertanejo do Nordeste brasileiro. A geograficidade, ou seja, a forma de experimentar a existência na Terra como uma espécie de cumplicidade obrigatória, como chamou o geógrafo francês Eric Dardel, conceituando esse estado de doação e compartilhamento entre os espaços; o humano e o geográfico; foi intensamente o ponto de partida para as criações do poeta e do ser humano Patativa do Assaré. Conte sobre a idéia de fazer o longa-metragem depois de tantos anos de amizade entre você e seu personagem, o próprio Patativa.

Rosemberg Cariry – Na raiz de tudo, está a minha amizade com Patativa do Assaré, que é meu compadre e já era meu ídolo, desde o meu tempo de criança, quando ele freqüentava as feiras do Crato e ia sempre à minha casa, por conta da forte amizade com meu pai. Acompanhei de perto a sua trajetória, a sua luta por justiça, os seus grandes embates políticos, a sua ascensão como um grande nome da cultura brasileira. Depois editei alguns dos seus livros, produzi alguns dos discos e recitais. Durante todo esse período, registrei a vida e as aparições artísticas do mestre, em cinema e vídeo. Embora, antes, eu tenha feito, com Jefferson de Albuquerque Jr, um curta-metragem sobre Patativa, a idéia de fazer um longa-metragem me surgiu de forma muito afetiva. A idéia surgiu com a sua morte, como se o filme, a nível simbólico, pudesse ser a sua ressurreição. Nos últimos anos da vida de Patativa, por conta das minhas viagens, pelo Brasil e pelo exterior, eu praticamente não vi mais meu compadre. E não pude visitá-lo, quando ele já estava doente, antes da sua morte. Eu soube da morte dele por meio de um telefonema de seu filho, mas a morte dele não me chegou como uma verdade definitiva. Patativa já era uma espécie de mito popular, e eu não podia conceber a sua morte. Ele morreu, e eu disse: “não morreu, porque eu não vi” . Como eu estava viajando, dei instruções a uma equipe para que gravasse os funerais. Depois, revendo esse material, vi que Patativa estava morto. E isso me abalou profundamente. Eu chorei muito, fiquei muito emocionado. Durante anos, eu não quis mexer nesse material. Eu tinha dezenas de horas de material gravado, mas não queria me debruçar sobre essa memória, esses sons e essas imagens, pois isso seria mergulhar em boa parte da minha vida, tantas eram as coisas que estavam ligadas a mim, aos momentos que vivera. Um dia, eu resolvi me debruçar sobre esse material. E foi muito difícil. Passei quase três anos mexendo nesse material. Montando e remontando, montando e remontando. E, num primeiro momento, fiz um filme imenso, com seis horas de duração. Eu contava a história do século XX inteiro, pela história do Patativa. Na verdade, eu fiz um seriado de cinco filmes, cada um relatando 20 anos da vida do poeta e dos principais acontecimentos históricos, que eram revistos a partir da poesia e da vida dele. E fazia experimentação de linguagem. Mas depois eu compreendi que o melhor pra esse filme era ser singelo, que o filme fosse apenas um suporte para que o próprio Patativa se revelasse. Então, eu dei um nó nas minhas “pretensões de cineasta” e deixei que o filme fluísse como um rio, onde Patativa estivesse, com toda sua beleza, grandeza, de forma muito natural. Eu diria que o filme é quase uma conversa daquelas de calçada. Antigamente, no sertão, o pessoal botava as cadeiras na calçada à espera da fresca do vento de Aracati. O filme é isso, uma conversa sobre um homem de grande arte e de grande generosidade. Espero que as pessoas entendam assim. Que percebam o filme como uma conversa no pé de calçada à espera do vento que sopra. Mas, ao mesmo tempo, é um filme que traz muitas inquietações políticas, que diz muito sobre quem nós somos.

ImprensaBR - Como você relacionou o seu olhar sertanejo com o de Patativa para chegar ao esboço de uma narrativa para o filme? Qual a contribuição que você, enquanto diretor do filme, deseja dar ao povo brasileiro, ao Nordeste brasileiro quando realiza um filme como Patativa do Assaré – Ave Poesia?

Rosemberg Cariry – Eu quis, com este filme, mostrar a importância e a grandeza desse artista e cidadão brasileiro que foi o Patativa do Assaré. Esse homem, saído da pobreza, que padeceu fome e sofreu muito como roceiro, foi um autodidata, aprendeu a ler sozinho e depois leu os grandes clássicos da literatura. Um homem que levantou a sua voz como um canto generoso de denúncia e de humanidade. Quis mostrar o Patativa da roça, do povo, dos sindicatos, dos recitais estudantis, dos movimentos políticos. Esse é o Patativa que eu trago na memória e a quem presto a minha homenagem. A grande visibilidade do Patativa acontece no período que vai da década de 70 à década de 80. Ele aparece para o grande público junto com a luta pela Anistia, pelas Diretas Já. Patativa aparece no processo de redemocratização do País, como poeta de um povo, como poeta de um sonho de liberdade. Porque, naquele momento, historicamente, se necessitava de uma voz coletiva. Quase todos os países e nações do mundo têm seus poetas de expressão nacional. No Brasil, você não tem. Drummond, Mário de Andrade? Naquele momento, Patativa, pelo menos no Nordeste pobre e rebelado, surge como esse poeta de expressão se não nacional pelo menos nordestina. E aí eu fiz essa ligação consciente, porque esse é o momento em que ele publica os livros, ele viaja. Em todos os lugares do mundo, você tem Patativa falando de direitos humanos, democracia. Mas, em nenhum momento, eu me descuido de um outro Patativa, que recita versos pras crianças, com ligação afetiva com sua esposa, carinhoso com seus amigos. Mas eu quis mostrar que esse foi o auge da maturidade política e poética. É o tempo em que, pela primeira vez, uma antologia poética do Ceará o inclui. É o momento em que o roceiro pobre, o “Zé-ninguém”, é aceito pela sociedade cearense - antes era espezinhado, negado.
Realizar esse filme documentário sobre Patativa do Assaré foi não apenas desvendar a biografia e a obra de um poeta, mas também mergulhar no vasto oceano da cultura coletiva do povo nordestino e tatear os caminhos onde a história individual se encontra com o destino histórico de todo um povo. Para elaboração desse trabalho, foram pesquisadas muitas fontes escritas e da tradição oral; muitos registros audiovisuais e iconográficos. Todo esse material, rico de informações e de suportes variados, destaca a relevância da obra patativiana, o significado político dos seus atos e a sua imensa contribuição à cultura brasileira. Patativa do Assaré participou de importantes momentos políticos brasileiros: ligas camponesas, resistência à ditadura militar, campanha pela Anistia e pelas Diretas Já. Na aérea cultural, foi homenageado pela Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência e participou ainda dos principais movimentos culturais do seu tempo: Movimento de Cultura Popular (MCP – Recife), Festivais de Música Popular Brasileira, Grupo de Arte Por Exemplo e Movimento Nação Cariri, entre tantos outros. A partir de 1970, Patativa do Assaré passou a simbolizar, para os jovens nordestinos, uma voz da resistência e das lutas democráticas. Além da imagem “oficial” do poeta, o documentário mostrará aspectos do cotidiano com a família e com os amigos, no sítio Serra de Santana e na cidade de Assaré, onde é chamado pelo nome carinhoso de “Senhorzinho”. Acredito que o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia é uma obra importante na preservação para gerações futuras de aspectos fundamentais da vida e da obra desse poeta popular que se transformou em um patrimônio cultural e afetivo do povo brasileiro. Um dos principais objetivos é que o filme, além da exibição em salas de cinema, tenha uma grande circulação em organizações populares e seja disponibilizado para rede de TVs educativas, culturais e comunitárias.

ImprensaBR - Você tem uma extensa trajetória como cineasta. Em 1975, no Crato, já produzia seus primeiros curtas-metragens, todos documentários. Em 1980, você começa a trabalhar com cinema de maneira profissional, ainda preferindo o gênero documentário para contar suas histórias sobre o povo e a cultura do nordeste, sua terra natal. Essa influência do cenário nordestino, das sagas fantásticas do homem da seca em busca da terra prometida, a terra da água, aparece como uma assinatura sua em seus filmes, como fora desde seu primeiro longa-metragem, em 1986, “A Irmandade da Santa Cruz do Deserto”, bastante premiado e exibido fora do Brasil. Comente um pouco sobre essa unidade estética em sua obra como cineasta.

Rosemberg Cariry – É verdade, eu trago comigo essa marca do sertão, o sertão não como um local limitado, fechado, mas como terra-sem-porteira, país-do-sem-fim (como concebia Guimarães Rosa). O sertão como encontro de mundos. O Cariri cearense, por conta do movimento religioso do padre Cícero, é o grande caldeirão das culturas populares nordestinas. Eu nasci dentro deste caldeirão. Estudei em seminários, tive contato com os grandes clássicos, mas também convivi com os grandes mestres da cultura popular, os cegos rabequeiros, os cantadores, os poetas cordelistas, os artistas anônimos das feiras. Tive a felicidade de conhecer e ser amigo de grandes mestres da cultura popular. Tudo isso terminou tendo sobre mim uma influência muito forte. Meus filmes traduzem esse universo, sob uma perspectiva universal, porque, na raiz de tudo, não está apenas a região, está o homem, o homem sertanejo expressando a sua herança universal. A cultura do sertão é um encontro das principais vertentes das culturas ocidentais: temos toda uma herança ibérica (católica, judia, moçárabe), toda uma influência da cultura mediterrânea, toda uma influência de culturas africanas e ameríndias, afora os muitos povos que passaram pelo Nordeste durante o brutal processo de colonização. Meus filmes refletem esse (des)encontro de mundos. Acredito que, por muitas razões, a minha obra adquiriu esta unidade narrativa, estética e de reveladora de um universo cultural.

ImprensaBR - Seu trabalho registrando o poeta Patativa do Assaré vem desde 1978; material que, nesses 27 anos, totaliza mais de cem horas de gravação. Em uma entrevista sua, li que você registrou cenas do poeta em diversos suportes: Super-8, 16mm, 35mm, U-Martic, Betacam. Quando você começou a selecionar esse material para a realização do longa Patativa do Assaré – Ave Poesia? E o processo de montagem do filme, como foi?

Rosemberg Cariry - Eu filmava e registrava Patativa com o que tinha nas mãos, nos diversos períodos, em que convivemos. Eu usei Super 8, 16mm, Vídeo U-matic, Betacam, Vídeo digital etc. Fui acompanhado a revolução tecnológica. Isso resultou em um importante acervo sobre a memória desse grande artista brasileiro. Terminei por fazer um longa-metragem, mas acontece que Patativa é de uma grandeza que não cabe em um só filme. Muitos outros com certeza virão, mesmo que sejam realizados por outros. O material que eu tenho sobre ele possibilitará outras abordagens, como a relação de Patativa do Assaré com a natureza. Ele sempre foi um grande defensor da natureza. Quando estamos montando um filme, é sempre uma coisa arbitrária escolher um poema e não outro etc. Muita coisa importante fica de fora. Ficaram de fora cenas do cotidiano dele com a família, ele fazendo brincadeiras com os netos, fazendo poesia pros amigos, fazendo versos picarescos etc. Há coisas interessantíssimas. Acho que, de certa forma, o importante é que esse acervo vai ser disponibilizado para o Estado. Vou disponibilizar esse material para o Arquivo Nacional. São mais de 100 horas de imagem. Afora as muitas horas de áudio, narrativas e entrevistas, que eu penso em disponibilizar junto com todos os outros materiais que eu tenho sobre cultura popular. Esse tesouro deve pertencer ao povo brasileiro. Não quero a propriedade desse acervo.

ImprensaBR - O filme já esteve em vários festivais brasileiros no ano passado. Participou do 17º Cine Ceará, um festival já consolidado no estado e um dos mais importantes do Brasil, onde foi lançado oficialmente. Em quais festivais o filme já foi exibido? E como ele tem sido recebido pelo público e pela crítica?

Rosemberg Cariry – O filme Patativa do Assaré – Ave Poesia teve a sua estréia em Fortaleza, e este foi um momento de intensa emoção, com milhares de pessoas aplaudindo em pé o velho mestre. Fiquei muito emocionado com aquela manifestação. O jornal O Estado de São Paulo refere-se a este momento como “a comoção Patativa”. Foi realmente um momento muito bonito, acho que foi um dos acontecimentos mais significativos de toda a minha carreira de cineasta, nestes quase 35 anos de trabalho árduo e sem tréguas. Depois disso, o filme participou de algumas mostras de cinema no Brasil e no exterior. Agora depois da Mostra do Rio das Ostras, estou liberando o filme para que ele siga o seu próprio caminho, com exibições em acampamentos de sem-terra, em mostras universitárias, em bairros e favelas, em cineclubes etc. Haverá também, no começo do ano, exibição de cópias em 35mm em algumas salas alternativas. O destino desse filme é ser do povo, assim como Patativa do Assaré era um poeta do povo. Outro dia, encontrei cópias do filme sendo vendidas nas romarias, com capas feitas de xilogravuras, com intervenções dentro do próprio filme, um artista popular cantando um bendito que falava de Patativa e do Padre Cícero. Pensei comigo: se nós podemos realizar filmes a partir da cultura popular, por que esta mesma cultura não pode utilizar-se dos nossos filmes? Gostei do que vi. Quanto à crítica, tem sido muito positiva, já foram escritos alguns ensaios sobre o filme, e alguém me contatou recentemente querendo fazer uma tese de mestrado. É legal toda essa movimentação em torno do filme.

ImprensaBR - Como está a campanha de lançamento do filme fora do Brasil?

Rosemberg Cariry – O filme já foi traduzido para o espanhol. Estamos agora fazendo uma cuidadosa tradução do filme para o francês e o inglês. Não é fácil traduzir a poesia de Patativa, com seu dialeto caboclo. A partir destas cópias legendadas, os filme entrará no circuito de algumas televisões culturais da América Latina e participará de mostras na Europa, bem como de seminários e simpósios sobre Patativa. Em março de 2009, comemoram-se os 100 Anos de Nascimento do Poeta Patativa do Assaré. No Ceará, e em todo o País, acontecerão seminários e mostras. Vou disponibilizar o filme para todos esses eventos. É uma forma de preservação da memória do grande poeta.

ImprensaBR - Em uma entrevista concedida a um grande jornal de Fortaleza, em março do ano passado, você comentou que o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia tem muitas chances de ser distribuído nacionalmente, por causa do interesse em torno da figura de Patativa do Assaré. "Não é um filme de grandes vôos comerciais, mas que deve despertar interesse das televisões públicas e universitárias, circular nas escolas e entrar no circuito cultural e artístico". Quando o filme chegará ao circuito comercial? Quantas cópias o filme têm e em quais estados inicialmente ele será exibido?

Rosemberg Cariry – Como eu já falei, o grande espaço do filme Patativa do Assaré será dentro dos movimentos culturais e sociais, uma coisa mais orgânica, participante da história. Além das chamadas salas de cinema de arte, o filme estará presente em cineclubes, em associações de bairros e favelas, em grêmios estudantis, em diretórios acadêmicos, em clubes de terceira idade, em movimentos dos sem-terra, em sindicatos operários, em organizações católicas sociais etc. Acho que esse é o destino do filme, ele precisa ir de encontro ao povo e ajudar na reflexão e na luta pela transformação da dolorosa realidade em que vivemos.

ImprensaBR - Como você vê a participação dos universitários e da sociedade civil no debate sobre a implantação da TV Pública?

Rosemberg Cariry – Vejo como sendo de fundamental importância. Sempre fui defensor de uma TV Pública no Brasil que fosse um espelho da nossa diversidade cultural, dos diversos brasis, da imensa criatividade do povo brasileiro. A saída do Orlando Senna da TV Brasil foi uma perda muito grande para essa visão mais generosa de uma televisão aberta, democrática e identificada com as lutas e os sonhos do povo brasileiro e latino-americano. Orlando Senna é um homem de visão larga e de grande generosidade, além de um grande senso de responsabilidade para com a nação brasileira. A sociedade civil tem que estar presente neste debate e reivindicar a democratização dos espaços. A grande luta hoje é por uma reforma no ar, que seja capaz de espalhar centenas de TVs e rádios comunitárias.

ImprensaBR - Ao afirmar que o filme deve ficar restrito aos circuitos artísticos, você insere Patativa do Assaré – Ave Poesia entre os filmes de arte ou cinema de arte. O que é necessário para que esse paradigma entre cinema comercial e cinema independente e de arte – que, muitas vezes, pode ser interpretado como um ponto negativo para a vida comercial de um filme - seja rompido?

Rosemberg Cariry – Essa divisão entre “cinema comercial” e “cinema de arte”, para mim, é uma coisa recente, imposta pelo comércio. Lembro-me que, nos anos 60, na cidade do Crato, no interior do Ceará, existiam seis cinemas, e neles nós víamos de tudo. De filmes de aventuras norte-americanos a filmes dos grandes diretores europeus, além de filmes de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Carlos Manga, Paulo Gil Soares, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Coimbra, Anselmo Duarte, Lima Barreto, além de muitos outros diretores. Víamos O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro como víamos um faroeste ou um filme de capa e espada. Sem divisões rígidas. E digo mais: adorávamos os filmes de Glauber da fase sertânica, para nós aqueles filmes eram aventuras e encantamento. Só depois é que resolvem prender esses filmes em nichos de mercado e em rótulos obscuros.

ImprensaBR - Como, você, que, antes de lançar Patativa do Assaré - Ave e Poesia, ficou seis anos sem fazer um novo trabalho para o cinema, avalia a produção de cinema no Ceará, atualmente? Comente as iniciativas do governo para a produção local. Bahia e Pernambuco também vivem um momento especial para a produção de audiovisual. Dê sua opinião sobre este bom momento para o cinema nordestino.

Rosemberg Cariry – O Ceará forma, hoje, juntamente com Pernambuco e Bahia, um dos grandes pólos de produção do Nordeste. Temos uma produção constante que consegue uma boa visibilidade em festivais nacionais e internacionais e circula nas salas de exibição. Temos uma nova geração de realizadores que têm se destacado pela inventividade, pela ousadia estética e pela proposta de novos argumentos. Os altos e baixos, ocasionados pela política pública para a cultura, não conseguiram interromper o fluxo criativo e produtivo do cinema no Ceará e na região. Pernambuco deu um grande salto de qualidade no cinema produzido na região e a Bahia, tradicional centro produtor na década de 60, retomou o seu papel. Temos assim, no Nordeste, uma cinematografia fresca, instigante, criativa. A grande renovação do cinema brasileiro está vindo do Nordeste.

ImprensaBR - Numa visão mais ampla, em nível nacional, como, em sua avaliação, estão funcionando as iniciativas do governo federal para o fomento à indústria cinematográfica brasileira no que diz respeito à produção, distribuição, exibição e à preservação das obras audiovisuais brasileiras?

Rosemberg Cariry – Durante a gestão do ministro Gilberto Gil, com a presença de Orlando Senna na secretaria do audiovisual, tivemos um grande impulso no desenvolvimento do audiovisual brasileiro, principalmente com os programas que nacionalizavam, ou descentralizavam, a produção, redistribuindo recursos para os pólos produtivos nas regiões mais diversas, bem como incentivando festivais, mostras e seminários, em todo o território nacional. Programas como os editais para filmes longa-metragem de baixo orçamento, DOCTV e Revelando os Brasis mostraram ser de grande eficácia, com resultados muito animadores. Os convênios e a renovação de equipamentos da Cinemateca Brasileira, do Centro Técnico Audiovisual e do Arquivo Público Nacional demonstram uma preocupação com a preservação da memória audiovisual brasileira. O grande problema, no entanto, é a distribuição. Os filmes brasileiros não conseguem chegar às salas de exibição nem à televisão. A grande exceção é o Canal Brasil, que só passa filmes brasileiros e a TV Brasil, que começa também a colocar filmes brasileiros em sua grade. O novo ministro da Cultura, Juca Ferreira, com certeza, dará continuidade a essa política de descentralização e valorização do audiovisual brasileiro e estará propondo novas medidas para resolver a questão da distribuição e da exibição na TV. O ministro é um profundo conhecedor do cinema brasileiro e tentará solucionar esses problemas, acredito.

ImprensaBR - Além de cineasta, você é filósofo por formação e escritor, já tendo lançado diversos livros, inclusive com outros autores. Em sua trajetória, você sempre atuou como militante no cenário cultural do Ceará, tendo participado de movimentos culturais significativos para a história do estado e de nosso país. Sem meias palavras, Rosemberg, comente sua biografia.

Rosemberg Cariry – Sou um homem do sertão que ama as pessoas e as paisagens do mundo e tenta ser coerente consigo mesmo e com a sua herança de humanidade.

ImprensaBR - Quais seus projetos futuros?

Rosemberg Cariry – Estou me preparando para rodar um filme pelo interior do Piauí, Ceará, Paraíba e Alagoas. O projeto se chama o Auto de Lampião no Além. Inspirado no cordel A Chegada de Lampião no Inferno. O filme conta as peripécias do Circo Teatro Piripiri, a partir do Delta do Parnaíba, com seus palhaços, atores e artistas populares, perambulando por pequenas cidades e vilas dos sertões, apresentando o “Auto de Lampião no Além”. No Auto, o inferno está em crise, e Lúcifer vê-se obrigado a aliar-se ao capital financeiro internacional. Essa aliança é traduzida nas diversas formas de exploração política, social e econômica do homem. A nova desordem do mundo, por outro lado, termina por inflacionar a população de “almas condenadas” no inferno. Para piorar a situação de crise, com repercussões desastrosas para todos os setores do inferno, chega a notícia de que o bando de Lampião e Maria Bonita, escorraçado do céu por São Pedro, aproxima-se para ali se acoitar, ameaçando tocar fogo no inferno. Lampião derruba a porta do inferno e lá encontra Lúcifer e Cão Gasolina, que, tomados de pavor, se submetem ao novo governador das fornalhas tenebrosas - mas, para tanto, pretende submeter-se a uma eleição no inferno. Lampião recua de seu intento diante das tentativas de Lúcifer de fraudar o pleito, e, por sugestão do cangaceiro e cantador Zabelê, é estabelecido que a disputa se dará na forma de desafio de viola entre o próprio Zabelê e o Cão Gasolina, representante de Lúcifer. Zabelê vence o desafio. Administrar o inferno não é tarefa fácil para Lampião. Os desentendimentos com Lúcifer são constantes, e o cangaceiro decide afastá-lo de suas funções. As coisas não melhoram, até que, um dia, no inferno, aparece (em visão) o Padim Ciço orientando Lampião a retornar ao sertão nordestino. Obediente, Lampião aceita o divino apelo. A atitude do bando é encarada por Lúcifer como uma vitória, pois, como o público descobrirá depois, tudo não passa de embuste do ardiloso Cão Gasolina.
Durante a trajetória do circo pelo interior do Piauí, acontece um farsesco triângulo amoroso entre Lazarino (desabusado ator que faz o papel do Cão Gasolina), Zeferino (proprietário do circo, mulherengo e dublê de ator) e Creuza (a bonita, gostosa e libidinosa mulher de Zeferino). O picaresco Lazarino envolve-se ainda em muitas aventuras e desventuras pelo sertão, ao modo dos anti-heróis picarescos e populares da literatura de cordel, que, pela artimanha e esperteza, derrotam os ricos, os poderosos, os doutores e os padres que se colocam em seu caminho.

ImprensaBR - Como recebeu o convite para participar da 2ª Mostra do Filme Ambiental e Etnográfico de Rio das Ostras? Será a primeira vez que um filme seu será exibido publicamente na cidade, você sabia?

Rosemberg Cariry - Não,não sabia. Eu fico muito contente com o convite, com essa possibilidade de mostrar o filme Patativa do Assaré – Ave Poesia para esse novo público, em um festival que começa a se firmar pela sua relevância cultural e a sua preocupação com a diversidade cultural do povo brasileiro e com a preservação do meio ambiente. Ainda não conheço Rio das Ostras, mas já ouvi falar das suas belezas. Espero um dia conhecer este pedaço mágico do Brasil.

ImprensaBR - Qual a importância de mostras, festivais, cineclubes em cidades do interior do Brasil, onde o cinema nacional ainda só chega pelas telas da TV ou em títulos norte-americanos, levadas a salas de shoppings, nos chamados circuitões?

Rosemberg Cariry – Considero da maior importância esse crescimento de jornadas, festivais, mostras e exibições do nosso cinema nas mais diversas regiões do País... Do Oiapoque ao Chuí, dos sertões da Paraíba ao planalto central, do pantanal aos pampas, do Rio das Ostras aos Lençóis Maranhenses. Vivemos um momento privilegiado desse encontro do cinema nacional com o seu público, além dos debates, dos cursos de formação audiovisual, dos prêmios, dos incentivos. Acredito, mesmo, que essa nova onda de festivais por todo o Brasil fará surgir uma nova geração de cineastas e videoastas que alargarão os horizontes da cinematografia brasileira nas próximas décadas. Sou contra, enquanto cineasta e também diretor da Associação de Produtores e Cineastas do Norte e Nordeste - APCNN, qualquer corte nas verbas para os festivais. O que precisamos é ampliar ainda mais a realização desses festivais que passam a ter importância cultural e econômica em cada uma das regiões onde se realizam.

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Currículo resumido do diretor
Natural do município cearense de Farias Brito, nascido em 1953, Rosemberg Cariry é filósofo de formação, poeta com cinco livros lançados e um dos fundadores do movimento de arte e cultura Nação Cariri. Como cineasta, estreou em 1986 com o documentário O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. No currículo, possui ainda os filmes A Saga do Guerreiro Alumioso (1993), Corisco e Dadá (1995), A TV e o Ser-Tão (1999), Pedro Oliveira, o Cego que Viu o Mar (1999); Juazeiro, a Nova Jerusalém (1999); Lua Cambará - Nas Escadarias do Palácio (2002), Cine Tapuia (2006) e Siri-Ará (2008). É ainda proprietário da Cariri Filmes, empresa especializada em produções audiovisuais.
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Leonor Bianchi

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Entrevista com Rosemberg Cariry



Fortaleza - 04/06/2007 - 02:41


O POVO - Aos cinco anos, ainda em Farias Brito, o senhor tremeu ao ver imagens projetadas por um cinemeiro em um velho lençol. Quais lembranças o senhor guarda da infância e de que forma ela se relaciona à sua carreira como cineasta?

Rosemberg Cariry - Uma das causas principais foi o fato de na cidade do Crato, onde eu passei a morar a partir da década de 1960, existirem muitas salas de cinema. Na época, existiam seis salas. Então, se viam muitos filmes. E o cinema era uma coisa muito presente na vida da gente. Nós vivíamos numa sociedade de transição. Com distanciamento, já se pode fazer essa análise. Era uma sociedade tradicional que começava a mudar de forma muito vertiginosa. Tanto uma transição política - por conta do golpe de 1964 -, mas também uma transformação muito profunda dos costumes. Chegava ao interior a energia de Paulo Afonso, o progresso, o consumo, a comunicação. Mas o cinema ainda tinha uma força muito grande, ainda era "a maior diversão". E nós, crianças, girávamos em torno de dois grandes pólos importantes. Um deles era a cultura popular, suas manifestações: os reisados, os congos, as festas de renovação, as bandas de pífanos dos irmãos Aniceto, a cerâmica figurativa de Dona Ciça, as cantorias de Zé Gato, a poesia de Patativa de Assaré, a rabeca de Cego Oliveira, contando suas narrativas fabulosas. E também o cinema. Então, todos nós meninos da periferia da cidade fazíamos de tudo para segurarmos algum dinheiro para ver cinema. Vendíamos cocada na rua, juntávamos cobra, alumínio na rua. Fazíamos de tudo, às vezes os pais nem sabiam, gazeávamos aula para ir ao cinema. E havia uma coisa muito interessante: representava um tesouro para a meninada os fotogramas. Normalmente ou tinha nos lixos do cinema ou se comprava dos projecionistas. Pra gente, aquilo tinha um valor muito grande, a gente fazia pequenos cinemas com caixas de sapato. Então, era uma coisa muito viva, muito lúdica. Junto com isso, nós tínhamos os contadores de história tradicionais. Eu diria que foi uma infância simples, mas muito rica sobre essa questão do imaginário, do afeto.

O POVO - Dessa emocionante cachoeira de sons e imagens até os primeiros curtas, nos anos 1970, o que aconteceu para o senhor se tornar realizador?

Rosemberg Cariry - concorria em pé de igualdade com qualquer cinema norte-americano. E tinha também no cine-educadora lá do Crato uma sessão das 16h, que era cinema de arte, digamos, onde a gente via os grandes mestres do cinema europeu. Foi uma época muito feliz para você ter vivido numa cidade do interior e ter acesso a essa informação tão diversificada. Aí nasce a vontade de fazer filme.

O POVO - Mas quando veio a profissionalização?

Rosemberg Cariry - como vai o cinema?". Eu disse: "Olhe, eu tenho um projeto assim, mas tá parado, eu não consigo porque não tem ajuda do Ceará". Ele disse: "Passa lá, que eu quero conversar contigo". E foi assim. Ele perguntou quanto eu precisava pra fazer o filme e me deu o dinheiro. Nós descemos pro sertão e fizemos esse filme. Esse filme foi muito interessante porque praticamente marca o retorno dos filmes brasileiros para os festivais internacionais. Nós viajamos mais de 12 países esse filme. Foi uma grande polêmica na época porque eram atores todos amadores, com cara do Ceará. Mas foi muito legal.

O POVO - E Para o senhor, em nível pessoal, qual a importância do Patativa na sua filmografia e na sua compreensão do mundo como artista?

Rosemberg Cariry - Rosemberg pessoal dizia: "Ah, os guias de cegos, não-sei-o-quê de aleijado".

O POVO - O Isso porque havia resistência em relação às culturas populares?

Rosemberg Cariry - Patativa roceiro, dos sindicatos, dos movimentos políticos. Esse é o Patativa que eu trago, de certa forma, na memória. E tento, nesse filme, uma singela homenagem. O Patativa é de uma grandeza tão grande que esse é só um filme, muitos om certeza virão. Mesmo porque o material que eu tenho sobre ele é muito grande. São horas e horas e horas. É sempre uma coisa arbitrária escolher um poema e não aquele etc. Tem uma cena que é o cotidiano dele com a família, ele fazendo bricandeira com os netos, fazendo poesia pros amigos, gozando. Há coisas interessantíssimas. Acho que de certa forma o importante é que esse acervo vai ser disponibilizado para o Estado. São mais de 100 horas de imagem. Eu diria que mais ainda de áudio, narrativas e entrevistas, que eu penso em disponilizar junto com todos os outros materiais que eu tenho sobre cultura popular. Para que isso fique como patrimônio do povo cearense.

O POVO - Por que o senhor decidiu se debruçar, agora, de novo sobre esse material do Patativa?

Rosemberg Cariry - A morte do Patativa... Nos últimos anos, por conta das minhas viagens ao exterior, eu praticamente não vi mais meu compadre. E não pude visitá-lo doente, antes da morte. Eu soube da morte dele, mas a morte dele não me chegou. A verdade é que não me chegou. Morreu e eu disse não morreu, porque não me chegou. E eu mandei uma equipe gravar os funerais. E eu vi que Patativa estava morto quando eu vi a imagem dele morto. E isso me abalou profundamente. Eu chorei muito, fiquei muito emocionado. Durante anos, eu não quis mexer nesse material. Mesmo porque eu sei, Patativa sempre me dizia - ele nunca tinha medo da morte, se referia como algo muito natural, tinha uma compreensão muito serena, eu diria. A passagem dele pelo mundo foi considerada quase uma missão, e a poesia seria um dom de Deus. Mas eu não quis. O debruçar sobre isso seria o debruçar sobre a minha vida. Tanta coisa que estava ligada a mim, a momentos que eu vivi. E um dia eu resolvi me debruçar sobre esse material. E foi muito difícil. Passei quase três anos mexendo nesse material. Montando e remontando, montando e remontando. E num primeiro momento fiz um filme imenso. Contava a história do século XX inteiro (risos), por meio do Patativa. Na verdade, eu fiz um seriado de cinco filmes por décadas, onde os grandes acontecimentos históricos eram interpretados pela poesia e pela vida dele. Exemplo: em 1922, a Semana de Arte; 1922 ele comprou uma viola. O Martelo Agalopado está sendo inventado no sertão. O povo inventa sua própria transformação e avanço cultural. E por aí saio interpretando muita coisa do país a partir do Patativa e do popular. E fazia experimentação de linguagem. Mas depois eu compreendi que o melhor pra esse filme era ser singelo, que só o Patativa tivesse presente. Então, eu dei um nó nas minhas pretensões de cineasta e deixei que o filme fluísse como um rio, onde Patativa estivesse com toda sua beleza, grandeza, de forma muito natural. Eu diria que é quase uma conversa daquelas de calçada. Antigamente, no sertão, o pessoal botava as cadeiras na calçada à espera da fresca do vento de Aracati. Vinha aquele vento fresco e as pessoas ficavam esperando para começar as conversas. O filme é um pouco isso também. Espero que as pessoas entendam assim. Uma conversa no pé de calçada à espera do vento que sopra. Mas, ao mesmo tempo, é um filme que traz muitas inquietações políticas, que diz muito sobre quem nós somos.

O POVO - Como o senhor falou, o Patativa é um personagem muito rico. O senhor poderia ter ido por vários caminhos, mas resolve focar o viés político do poeta. Essa escolha foi consciente, sabida desde o princípio a montagem?

Rosemberg Cariry - É uma escolha que eu vivi com ele. A grande visibilidade do Patativa acontece nesse período. Ele aparece junto com a luta pela Anistia, das Diretas Já. Patativa aparece no processo de redemocratização do País. Porque naquele momento, historicamente, se necessitava de uma voz coletiva. Quase todos os países e nações do mundo têm seus poetas de expressão nacional. No Brasil, você não tem. Drummond, Mário de Andrade? Naquele momento, Patativa, pelo menos no Nordeste pobre e rebelado, surge como esse poeta de expressão se não nacional pelo menos nordestina. E aí eu fiz essa ligação consciente, porque esse é o momento em que ele publica os livros, ele viaja. Em todos os lugares do mundo, você tem Patativa falando de direitos humanos, democracia. Mas em nenhum momento eu me descuido de um outro Patativa, que recita versos pras crianças, com ligação afetiva com sua esposa, carinhoso com seus amigos. Mas eu quis mostrar que esse foi o auge da maturidade política e poética. É o tempo em que pela primeira vez uma antologia poética do Ceará o inclui. É o momento em que o Zé-ninguém é aceito pela sociedade cearense - antes era espezinhado, negado.

O POVO - O senhor, além de cineasta, é pesquisador das culturas populares nordestinas, escritor, poeta, filósofo. Quais são as dificuldades em lidar com o tema das culturas populares sem cair na estereotipação que tanto idealiza quanto condena?

Rosemberg Cariry - Acho esse um dos grandes perigos. Acho que o que me salvou foi que a gente veio de uma geração que viveu na década de 1960 a contracultura. Tanto uma contracultura que pegava essa cultura popular, muitas vezes, como forma de protesto. Nós pegávamos o Cego Oliveira, arrastávamos da feira e levávamos pra dentro da faculdade, no Crato, e ele fazia uma cantoria inteira. E ele cuspindo no chão. Não só era uma beleza, uma riqueza, pela voz rasgada e tudo, a gente achava que ele era como os grandes músicos americanos de jazz e blues da década de 1920, 1930. E anunciávamos isso. Tínhamos isso da contestação. Jamais nós tocávamos ou nos aproximávamos disso como folclore. Eram pessoas que participavam junto com a gente de uma transformação histórica, em mesmo pé de igualdade. Eles participavam dos nossos movimentos, das nossas peças de teatro, dos nossos filmes, dos nossos livros. É uma relação, eu diria, de amor e de conflito também. Eles eram instrumentos da nossa rebeldia. Ao mesmo tempo em que nós reconhecíamos neles esse valor da ancestralidade. Aconteceu por conta da nossa formação mais acadêmica, clássica, a gente leu muito sobre as culturas européias, medievais, sobre mitologia. E começamos a descobrir nessa cultura não o que se chama de regionalismo, mas nossa possibilidade de comunicação com o mundo. Então o Cego de Oliveira, a gente encontrava esse cego cantando na Idade Média. Descobria que o Martelo Agalopado vinha dos martinetes do século XII da Península Ibérica. Ia buscar as correspondências mouriscas e magrebinas do Norte da África, nessas histórias todas. E, de repente, Cego Oliveira era nosso Homero. A poesia de Patativa era musicada pela moçada nova, da turma da gente. Era tudo muito próximo. Não era aquela coisa de um sacrário intocável da cultura popular e do folclore. Essa cultura popular foi chamada para nos ajudar num processo de transformação social que acreditávamos como possível. E, ao mesmo tempo, tinha nossa militância política.

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

ENTREVISTA – DIÁRIO DO NORDESTE

ENTREVISTA – DIÁRIO DO NORDESTE



Diário - Sabemos que o senhor foi um dos primeiros intelectuais e estudiosos a reconhecer as qualidades da arte de Patativa, daí a sua contribuição para a vinda do "poeta do sertão" para a cidade e também para ele conseguir a projeção que alcançou. O senhor poderia contar um pouco dessa história? Como foi a descoberta do Patativa?


R – No início da década de 30, o jornalista José Carvalho deu ao jovem Antonio Gonçalves da Silva o cognome de Patativa do Assaré e, no seu livro “O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará”, publicou um artigo reconhecendo Patativa como grande improvisador e inspirado poeta popular. No entanto, acredito que a primeira pessoa, de formação acadêmica, a reconhecer Patativa do Assaré como uma grande expressão literária foi José Arraes de Alencar (parente de Patativa, tio de Miguel Arraes e de Violeta Arraes), destacado filólogo no Rio de Janeiro, que, em visita a familiares, no Crato, ouviu Patativa, pela primeira vez, recitando seus poemas no Programa de Tereza Siebra, na Rádio Araripe. Maravilhado com a beleza dos versos do poeta de Assaré, José Arraes de Alencar incentiva-o a publicar o seu primeiro livro, “Inspiração Nordestina”, pela editora Borsói, do Rio de janeiro, em 1956. Com o livro pronto no matulão, viola nas costas, Patativa andou por todo o Ceará fazendo suas cantorias e vendendo o seu livro, para pagar a dívida que contraíra com o editor. Nesta época, fez contatos com o movimento das Ligas Camponesas e compôs poemas sobre a reforma agrária. Usando um pseudônimo, Patativa do Assaré publicou poemas em jornais de esquerda que refletiam as inquietações políticas do movimento operário-camponês. Antes deste reconhecimento “oficial” do “mundo letrado”, Patativa já gozava de alguma fama entre o campesinato pobre, por meio das cantorias que realizava, ao som da viola. O início da década de 60 encontra o Nordeste em plena ebulição política e social, notadamente em Pernambuco e na Paraíba, onde o movimento das Ligas Camponesas ganhara grande força entre a população rural. Em 1962, a convite do seu parente, o governador Miguel Arraes, apresentou-se com outros cantadores, em Recife, ocasião em que tomou conhecimento dos acontecimentos políticos recentes e fez contatos com lideranças camponesas pernambucanas e paraibanas. Nesta ocasião, ele cantou com os grandes nomes da cantoria nordestina. O golpe militar de 64 trouxe atribulações para Patativa, que viu várias lideranças do movimento camponês serem presas e também foi ameaçado de prisão. Neste período, Patativa relacionou-se de forma mais intensa com a intelectualidade democrática e esquerdista do Crato, principalmente com Edudoro Santana, Landim, Raimundo Bezerra, J. de Figueiredo Filho e Elói Teles de Moraes, que fazia um programa de poetas populares, na Rádio Araripe do Crato e torna-se um grande divulgador da sua poesia. Bom, com isto quero dizer que, bem antes, alguns nomes do meio intelectual e político do Cariri já reconheciam a importância de Patativa, mesmo que ainda fosse no âmbito regional.


Diário - Quando foi que você conheceu Patativa do Assaré?


R - Patativa era amigo dos meus pais, Zé Moura e Anita, e do meu avô Manuel Pereira, dono do Bar Tupy. Quando ele vinha do Assaré para as feiras do Crato, o caminhão misto que fazia o transporte de feirante estacionava próximo ao bar do meu avô. Patativa, muitas vezes, era levado pelo meu pai para almoçar na nossa casa e, depois do almoço, depois de fazer suas compras e se livrar dos compromissos, ficava algum tempo no bar Tupy, improvisando versos, recitando para as pessoas e “bebericando” algum conhaque. Estes recitais eram muito prestigiados, as pessoas sentavam-se nas mesas, ficavam em pé na porta do estabelecimento, aplaudiam, choravam, riam. Meu avô gostava da presença de Patativa no seu estabelecimento, pois aumentava a freguesia e, conseqüentemente, o seu lucro de pequeno comerciante. Durante toda a década de 1960, na minha adolescência, acompanhei Patativa do Assaré, nas feiras, e ouvia também os seus recitais na Rádio Araripe, ao amanhecer, no programa de Elói Teles. Foi no Bar Tupi e na bodega do meu pai que eu conheci os grandes nomes da cultura popular do Cariri. A feira era o grande palco para as apresentações destes artistas, e o bar do meu avô um ponto de encontro.


Diário - Como foi o seu primeiro contato com o Patativa?


R - Patativa hospedava-se, quando demorava por alguns dias no Crato, em uma humilde “pensão”, na ladeira do Joquinha, próximo do bar do meu avô. Acho que o primeiro verso que o vi recitando, para feirantes, no bar Tupy, foi “A Menina e a Cajazeira”, poema de intenso lirismo e profunda nostalgia. Fiquei emocionado. De outra vez, encontrei-o com muita raiva, alguém lhe roubara uma pequena mala com os livros que trouxera para vender aos comerciantes e feirantes do Crato. Nesta ocasião, ele improvisou um soneto bem desaforado e pessimista se referindo à dor da existência e à tragédia humana. No outro dia, quis anotar este poema, corretamente, mas Patativa se negou a recitá-lo, disse que não se lembrava. Depois ele o publicou totalmente modificado. A minha irmã, Rita de Cássia, aprendia poemas graciosos e brejeiros de Patativa, como “Maria Gulora”, para recitar na escola. Da maior importância para divulgação do poeta do Assaré, neste período, foi o trabalho do prof. Filgueira Sampaio, conhecido folclorista, que hospedava Patativa em Fortaleza e organizou as suas primeiras apresentações em Festivais folclóricos na capital.


Diário - Até quando durou esta sua convivência com Patativa?


R - Esta convivência semanal com Patativa durou até o início da década de 70, quando saí do Crato e fui estudar em Ouro Preto, em Minas Gerais. Durante este período, mantivemos correspondência, eu que fazia poemas “rimados” comecei a fazer meus primeiros poemas livres e diversifiquei minhas leituras. Quando voltei para o Crato (1972), o prof. J. de Figueiredo Filho, presidente do Instituto Cultural do Cariri, tinha lançado o livro “Patativa do Assaré, novos poemas comentados” (1970), com grande repercussão na região. Patativa alargou ainda mais o seu círculo de amizade com intelectuais e políticos democráticos que militavam na oposição. No Crato, juntamente com outros jovens escritores, poetas, compositores e atores, fundei o movimento de arte e cultura “Por Exemplo”. Patativa era por nós convidado a participar de shows, de recitais e de performances teatrais. Fazíamos coisas bem ousadas para época e Patativa (sempre zeloso na métrica e nas rimas) parecia divertir-se muito com aquilo tudo (ele adorava os versos “surrealistas” e experimentais de Geraldo Urano), tendo realizado inúmero recitais no Salão de Outubro, em praças públicas. Patativa foi muito próximo desta geração que, no Cariri, fazia arte de vanguarda, amava os Beatles, os Rolling Stones, a contracultura e juntava-se à cultura popular, em suas contestações. A tradição e a modernidade, o regional e o universal agitavam-se em nós, em insolúvel e criativo conflito. Neste período, alguns pesquisadores estrangeiros descobrem e anunciam a importância da produção poética de Patativa. Em 1978, por iniciativa do sociólogo Plácido Cidade Nuvens, foi lançado, pela Editora Vozes, com grande repercussão nos meios intelectuais brasileiros, o livro “Cante lá que eu canto cá”. Patativa do Assaré deve à publicação deste livro o seu reconhecimento pela intelectualidade dos grandes centros e o início da sua descoberta pela grande imprensa.


Diário - Quando você faz o seu primeiro filme com Patativa do Assaré?


R - A partir de 1978, comecei a trazer Patativa para algumas apresentações estudantis, em Fortaleza, e com Jakson Bantim, Salatiel e Dedê, iniciei o filme de média metragem chamado “Patativa do Assaré – um Poeta Camponês”, em super 8. Este filme foi exibido em 1979, durante a realização do Congresso Brasileiro para Ciência – SBPC . Em Fortaleza, em homenagem a Patativa, a SBPC nomeou seu congresso anual de “Cante lá que eu canto cá”. Neste mesmo congresso, organizei e dirigi, junto com o pessoal do grupo Siriará, o show “Canto Cariri”, que apresentou, no Teatro José de Alencar, dezenas de artistas populares do Cariri, entre eles Patativa do Assaré (o grande homenageado). Patativa participou de shows memoráveis, nesta época, sendo aclamado por lideranças intelectuais e populares de todo o País, e atuou no movimento pela anistia. A sua música “Canção do Pinto” torna-se uma espécie de hino libertário da anistia e da redemocratização do País. O jornal e movimento cultural “Nação Cariri”, do qual fui um dos dirigentes (ao lado de Oswald Barroso, Firmino Holanda, Itamar do Mar, Dedê, B. C. Neto, Carlos Emílio e Teta, entre outros), tornou-se um dos grandes divulgadores de Patativa, e ele participa dos inúmeros shows, recitais e caravanas culturais que são organizados por cidades do interior. Uma longa entrevista por mim realizada com Patativa foi publicada no livro “Cultura Insubmissa” (1982). Neste mesmo livro, Oswald Barroso publicou o artigo ”Patativa do Assaré – Nosso poeta do futuro”. Em 1994, juntamente com Jefferson de Albuquerque Jr, rodei (em 16mm, depois ampliado para 35mm) o filme “Patativa do Assaré – um Poeta do povo”, que foi legendado em vários idiomas para exibições em festivais nacionais e internacionais. O filme ganhou prêmios na Jornada Internacional de Cinema da Bahia e circulou no Brasil e no exterior. No movimento “Massafeira”, em 1979, organizei a participação de artistas populares do Cariri. Patativa do Assaré foi a estrela maior e realizou shows, apresentando-se ao lado de Fagner e de Ednardo. Consolidou também a sua amizade com jovens compositores cearenses. Ainda na “Massafeira”, a CBS grava ao vivo um disco, “Poemas e Canções”, produzido por Raimundo Fagner. Em 1980, Patativa se apresenta com Fagner em vários shows por todo o País, e a música “Vaca Estrela e Boi Fubá” torna-se um grande sucesso popular. Em 1981, Fagner produziria um novo disco de Patativa, “A Terra é Naturá”. Foi neste ano que Patativa deixou Serra de Santana e passou a morar em Assaré. Atendendo a inúmeros convites, apresenta-se em programas da Rede Globo, recebe homenagens oficiais e títulos de cidadão de várias cidades. O sucesso e o reconhecimento popular nacional de Patativa do Assaré, iniciados a partir da segunda metade da década de 70, consolidam-se no início da década de 80 e chegam ao seu apogeu em 1984, quando o poeta se faz presente em vários acontecimentos políticos e culturais, participando da campanha pelas “Diretas-Já”. Por todo o Nordeste, nos palanques e nos palcos, nas universidades e nas praças públicas, nas latadas dos sertões e nas feiras, recita os seus poemas, ao lado de grandes artistas e políticos que lutam pela redemocratização do País.


Diário - Quando começa a nascer o mito Patativa do Assaré?


R - Acredito que, quando ele fica cego de um olho, ainda na infância, o destino termina por lhe impor o trágico sinal de Camões. Depois, quando ele compra a viola e faz as suas primeiras cantorias, começa a sua trajetória para a imortalidade. Os poemas de Patativa são tão bem elaborados, tão sofisticados, em suas formas literárias, tão cheios de significados e de humanidade, que se tornaram famosos entre os segmentos mais pobres e socialmente excluídos da população sertaneja, bem antes mesmo do reconhecimento dos intelectuais. Patativa foi julgado, inicialmente, pela elite culta do Ceará, como sendo um poeta rude, analfabeto, matuto, beiradeiro. Em Fortaleza, eram muitos os intelectuais e escritores que tinham preconceitos com a poesia de Patativa. Isto foi mudando aos poucos. O encontro de Patativa com nomes como Luiz Gonzaga, Fagner e outros nomes da MPB foi importante para uma ampla difusão do seu nome e das suas canções. A resposta positiva por parte de críticos literários do sudeste aos seus livros e mesmo o interesse de alguns pesquisadores estrangeiros terminaram por mudar o enfoque da intelectualidade fortalezense sobre Patativa. A imprensa alternativa da época também desempenhou um papel importante no reconhecimento do poeta. Na década de 1980, quando a conjuntura política do País apontava para a democracia, no Ceará, esta mudança deu-se com a queda dos chamados “coronéis” e a ascensão do jovem empresário Tasso Jereissati, que foi eleito como Governador do Ceará (1986), com apoio da esquerda e de Patativa do Assaré. O reconhecimento oficial do Estado do Ceará, para Patativa, chegaria na forma da “Medalha da Abolição”, honraria que lhe foi conferida pelos “relevantes serviços prestados ao Estado”(1987). Quando, em julho de 1988, a Dra. Violeta Arraes assumiu a secretaria de Cultura do Estado, as artes eruditas e populares ganharam um novo impulso. Patativa passou a ser reconhecido, oficialmente, como um dos grandes ícones não apenas da cultura popular, mas também como um poeta erudito, artífice de rimas e métricas perfeitas, sendo colocado em alto pedestal. A entrega do diploma “Doutor Honoris Causa”, pela Universidade Regional do Cariri - URCA, em 1989, transformou-se em grande acontecimento cultural e político. Nesta época, produzi e prefaciei o livro “Ispinho e Fulô” (1988), importante coletânea de poemas de Patativa, e produzi e dirigi o disco “Patativa – Canto Nordestino” (1989). Patativa, neste período, era bastante requisitado, e os seus recitais eram grandes sucessos de público. Com algum dinheiro que ganhou de apresentações, recitais, livros e discos, começou a ajudar os netos a estudar. Ele sonhava formar todos os netos. O nome de Patativa crescia como fenômeno de comunicação de massa, e a imprensa nacional (rádio, jornal e televisão) dedicavam-lhe generoso espaço. Os festejos do seu aniversário naquele ano de 1989 foram encerrados com apresentação de Patativa do Assaré e Fagner, no memorial da América Latina, em São Paulo. O poeta começava a virar um mito. Acredito que a década de 1990 consolida a fama nacional de Patativa (já velhinho – encarnando o arquétipo do velho sábio e do grande pai). Ele, que muitas vezes fora negado pela cultura erudita e intelectual, tinha agora o reconhecimento oficial, além do profundo reconhecimento do seu povo. Popularmente, Patativa torna-se um mito (vivo), ao lado de outros mitos em constante mutação, como Padre Cícero, Antonio Conselheiro, Lampião e Cego Aderaldo. Seminários sobre a sua obra do poeta foram organizados por universidades de todo o Nordeste. O poeta B. C. Neto propôs homenagens a Patativa na Universidade Estadual do Ceará. O poeta recebeu títulos de “Doutor Honoris Causa” de destacadas universidades e teve os seus poemas publicados em antologias (“Letras ao Sol” - 1998, organizada por Osvald Barroso e Alexandre Barbalho) e traduzidos em vários idiomas. É iniciada uma profícua produção acadêmica sobre o poeta, destacando-se, no final do século XX e início do século XXI, os nomes de Gilmar de Carvalho, Tadeu Feitosa, Francisco de Assis Brito, Maria Silvana Militão, Oswald Barroso, Cláudio Henrique Sales, Luiz Tadeu Feitosa e a francesa Sylvie Debs, entre outros. Gilmar de Carvalho é, neste período, o mais dedicado e profícuo estudioso da obra de Patativa, contribuindo muito no seu reconhecimento pelo mundo acadêmico. Para escândalo dos “puristas” da cultura popular, Patativa do Assaré vira enredo de escolas de samba, tema de quadrilhas juninas e participa de novelas da Globo, ao lado de Geraldo Amâncio, a convite do ator e cantor Jackson Antunes. Patativa transforma-se, assim, em um “personagem” constantemente solicitado pela mídia.


Diário - Qual o grande acontecimento na vida de Patativa, neste período?


R - Um acontecimento triste. No dia 15 de maio de 1994, morreu Dona Belinha, que já se encontrava doente, paralítica, em uma cadeira de rodas. A morte da esposa deixou o poeta Patativa muito abatido e, durante algum tempo, ele se recolheu à sua casa, em Assaré, sem, no entanto, deixar de produzir os seus poemas, ainda belos e de grande lucidez. A humilde casa do poeta, em Assaré, virou local de verdadeiras “romarias”. Todos os dias chegavam automóveis e ônibus, cheios de pessoas vindas de todo o Brasil para visitá-lo, tirar fotografias ao seu lado e ouvir os seus poemas e até mesmo seus conselhos. Patativa Conselheiro. Patativa gostava de ficar horas recitando para estas platéias maravilhadas e gratificadas com a sua generosidade. Muitos outros acontecimentos ajudaram ainda a aumentar a fama de Patativa. Em 1995, o prof. Plácido Cidade Nuvens, incansável divulgador da obra de Patativa do Assaré, publicou o livro “Patativa e o Universo Fascinante do Sertão”. O poeta recebeu o “Prêmio Ministério da Cultura”, na categoria Cultural Popular. Novos seminários universitários sobre a obra de Patativa foram organizados e foram lançados novos CDs com seus poemas, novos álbuns de xilogravuras com a sua vida (verdade e imaginação) são publicados, e suas canções são gravadas por importantes nomes da música popular brasileira. Seu nome é dado a rádios comunitárias, centros culturais, escolas, estradas e até mesmo para rotular o lançamento de cachaça, em Juazeiro do Norte. Em 1998, no dia 10 de agosto, em sessão solene da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, Patativa recebe o título de “Cidadão paulistano”. Em 1999, com grande participação popular, a presença do povo, de autoridade e artistas, é inaugurado, pelo Governador Tasso Jereissati, o memorial “Patativa do Assaré”, em Assaré. Por ocasião da IV Bienal do Livro, no ano de 2000, Patativa do Assaré foi novamente homenageado. Doente, sem poder viajar para Fortaleza, o poeta foi entrevistado por Dílson Pinheiro, em Assaré (no memorial), ao mesmo tempo em que artistas e autoridades lhe prestavam homenagens, no palco do centro de convenções, em Fortaleza. A TV Ceará transmitiu este programa ao vivo, com grande audiência.


Diário - Como foi o fim da vida de Patativa?


R - A partir de 2001, agravou-se muito a doença de Patativa. O poeta já não viajava e sofria com os constantes internamentos, em hospitais da região do Cariri. Mesmo assim, apesar da doença e do sofrimento, continuava a fazer versos que eram divulgados pelos jornais e pelas televisões, que insistiam em entrevistá-lo. Cada entrada ou saída de Patativa nos hospitais era pauta para os noticiários. O médico cratense José Flávio Vieira, que cuidou de Patativa nos seus últimos dias de vida, disse-me que ele encarava a morte com muita tranqüilidade, como merecido repouso. No dia 8 de julho de 2002, às 18:30 horas, morreu Patativa do Assaré. Todo o Nordeste chorou a morte do poeta e a notícia do seu falecimento foi publicada nos maiores jornais e revistas do País, em reportagens especiais e homenagens. No dia seguinte, com grande participação popular e a presença de autoridades e artistas vindos de todo o País, acontece o sepultamento do grande mestre da poesia brasileira. A morte é a completude. Patativa deixou a terra dos homens e entrou definitivamente no território do mito, o mito mais profundo, o mito que habita a alma de um povo e se abraça com sua eternidade. Desde a sua morte, o nome de Patativa do Assaré não parou de crescer. Suas canções foram regravadas, seus livros e CDs foram reeditados. Quando produzi e fiz a curadoria do “Festival Internacional de Trovadores e Repentistas” (2004/05) demos o nome de “Patativa do Assaré” ao troféu que homenageava os grandes nomes da poesia e da cantoria do Brasil e do exterior. Em 2007, no “XVII Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema”, em Fortaleza, aconteceu a estréia nacional do filme de longa-metragem “Patativa do Assaré – Ave Poesia”, que montei com as imagens que fiz do velho mestre durante mais de vinte anos. A exibição do filme foi uma verdadeira consagração popular, registrada pela imprensa como a “comoção Patativa”.


Diário – Depois de livros, de discos e de filmes, o que você pensa ainda fazer em memória de Patativa?


R – Estou pensando em propor ao Governador Cid Gomes e ao Secretário de Cultura, Auto Filho, a construção de um Mausoléu. No pontão da Serra de Santana (onde nasceu e viveu Patativa), descortina-se uma bela paisagem do vale onde está situada a cidade de Assaré. A idéia é cortar um dos imensos monólitos ali existentes na forma de um cubo (como a Kaaba, a pedra sagrada dos muçulmanos), depois se revestiria este gigantesco cubo de granito com mármore preto e, em uma cavidade aberta na pedra, seriam depositados os restos mortais de Patativa e de Dona Belinha. Apenas uma placa de bronze anunciaria o jazigo perpétuo. No entorno, com a paisagem natural de lajedos e a flora da caatinga, seria cultivado um jardim, ao modo de um jardim Zen japonês: vazio e essencialidade. Este jardim sertânico seria um local de contemplação e de meditação. Outro desejo meu é organizar uma coletânea de poemas de Geraldo Gonçalves de Alencar, discípulo e parceiro de Patativa, extraordinário poeta, também de Assaré.

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